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Para navegar no século XXI – Tecnologias do Imaginário e
Cibercultura
Da necessidade de um
pensamento complexo
Edgar Morin
Sociólogo,
C.N.R.S./França
* tradução de Juremir
Machado da Silva
Política de
civilização e problema mundial
Vou tentar descrever,
de maneira breve, o problema do desafio da complexidade.
Começarei pela idéia
de que toda e qualquer informação tem apenas um sentido
em relação a uma
situação, a um contexto. Se, por exemplo; eu disser "amo-te",
esta palavra pode ser
a expressão de um apaixonado sincero e deve ser tomada
nesse sentido; mas
pode ser também a farsa de um sedutor e nessa altura será
uma mentira.
Pode ser ainda, numa
peça de teatro, a palavra de um herói, e não do ator que
desempenha o papel
do personagem; o sentido das palavras muda, portanto,
necessariamente,
segundo o contexto em que as empregamos; é por isso que,
em lingüística, como
todos sabemos, o sentido de um texto é esclarecido pelo
seu contexto. Por
exemplo: quando ouvimos as informações na televisão ou as
lemos nos jornais, a
palavra Sarajevo, a palavra Hezbollah e a palavra Kabul não
têm sentido se não
as situarmos no seu contexto geográfico e histórico, o que
quer dizer que, para
conhecer, não podemos isolar uma palavra, uma informação;
é necessário ligá-Ia
a um contexto e mobilizar o nosso saber, a nossa cultura,
para chegar a um
conhecimento apropriado e oportuno da mesma.
O problema do
conhecimento é um desafio porque só podemos conhecer, como
dizia Pascal, as
partes se conhecermos o todo em que se situam, e só podemos
conhecer o todo se
conhecermos as partes que o compõem. Ora, hoje vivemos
uma época de
mundialização, todos os nossos grandes problemas deixaram de
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ser particulares
para se tomar mundiais: o da energia e, em
especial, o da
bomba atômica,
da disseminação nuclear, da ecologia, que é o
da nossa
biosfera, o
dosvírus, como a Aids, imediatamente se mundializam.
Todos os
problemas se situam em
um nível global e, por isso, devemos mobilizar a nossa
atitude não só
para os contextualizar, mas ainda para os mundializar,
para os
globalizar; devemos,
em seguida, partir do global para o particular e do particular
para o global, que é
o sentido da frase de Pascal: "Não posso conhecer o todo
se não conhecer
particularmente as partes, e não posso conhecer as partes se
não conhecer o todo".
Deveríamos,
portanto, ser animados por um princípio de pensamento
que nos
permitisse ligar as
coisas que nos parecem separadas umas em relação às outras.
Ora, o nosso
sistema educativo privilegia a separação em vez de
praticar a
ligação. A
organização do conhecimento sob a forma de disciplinas seria útil
se
estas não
estivessem fechadas em si mesmas, compartimentadas
umas em
relação às outras;
assim, o conhecimento de um conjunto global,o homem, é um
conhecimento
parcelado. Se quisermos conhecer o espírito humano,
podemos
fazê-Io através das
ciências humanas, como a psicologia, mas o outro aspecto do
espírito humano, o
cérebro, órgão biológico, será estudado pela biologia.
Vivemos numa
realidade multidimensional, simultaneamente
econômica,
psicológica,
mitológica, sociológica, mas estudamos estas
dimensões
separadamente, e não
umas em relação com as outras. O princípio de separação
torna-nos talvez mais
lúcidos sobre uma pequena parte separada do seu contexto,
mas nos torna cegos ou
míopes sobre a relação entre a parte e o seu contexto.
Além disso, o
método experimental, que permite tirar um "corpo"
do seu meio
natural e colocá-Ia
num meio artificial, é útil, mas tem os seus limites, pois não
podemos estar
separados do nosso meio ambiente; o conhecimento
de nós
próprios não é
possível, se nos isolarmos do meio em que
vivemos. Não
seríamos seres
humanos, indivíduos humanos, se não tivéssemos crescido num
ambiente cultural onde
aprendemos a falar, e não seríamos seres humanos vivos
se não nos
alimentássemos de elementos e alimentos provenientes do
meio
natural.
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Por outro lado,
durante muito tempo, a ciência ocidental foi reducionista (tentou
reduzir o
conhecimento do conjunto ao conhecimento das
partes que o
constituem, pensando
que podíamos conhecer o todo se conhecêssemos as
partes); tal
conhecimento ignora o fenômeno mais importante, que
podemos
qualificar de
sistêmico, da palavra sistema, conjunto organizado de
partes di-
ferentes, produtor
de qualidades que não existiriam-se as partes
estivessem
isoladas umas as
outras.É isto que podemos chamar “emergências", Por exemplo,
somos a vida. Um ser
humano é constituído por moléculas, moléculas químicas,
moléculas de
ácidos, ácidos nucléicos e aminoácidos. Nenhuma
destas
macromoléculas tem,
por si só. as qualidades que dão a vida; a organização viva,
feita destas
moléculas, organização complexa, tem um certo
número de
qualidades que
emergem. qualidades de autoprodução.
auto-reprodução,
autodesenvolvimento,
comunicação, movimento etc.
Não podemos,
portanto, compreender o ser humano apenas através
dos
elementos que o
constituem. Se observarmos uma sociedade, verificaremos que
nela há interações
entre os indivíduos, mas essas interações formam um conjunto
e a sociedade,
como tal, é possuidora de uma língua e de uma
cultura que
transmite aos
indivíduos; essas "emergências sociais"
permitem o desen-
volvimento destes.
É necessário um modo de conhecimento que
permita
compreender como
as organizações, os sistemas, produzem as
qualidades
fundamentais do nosso
mundo.
Tratemos agora do
fenômeno da auto-organização. O ser humano é autônomo,
mas a sua autonomia
depende do meio exterior. Se temos necessidade de nos
alimentar, é
porque o nosso organismo trabalha continuamente, degrada
a sua
energia e tem
necessidade de renová-Ia, extraindo-a do mundo exterior sob a for-
ma já organizada dos
alimentos vegetais ou animais. Por isso, para ser autônomo,
tenho de depender
do meio exterior; para ser um espírito autônomo,
tenho de
depender da cultura de
que alimento os meus conhecimentos. a minha faculdade
de conhecimento e a
minha faculdade de julgar. Assim, somos levados a pensar
conjuntamente em
duas noções que até agora se encontravam
separados,
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porque durante muito
tempo não podíamos compreender a autonomia do ponto
de vista
científico, visto que o conhecimento científico
clássico só conhecia o
determinismo. A
autonomia só podia ser pensada do ponto de vista
puramente
metafísico, quer
dizer, excluindo qualquer laço material. Por um lado,
tínhamos
uma ciência com
dependência, mas sem autonomia, e por outro
lado uma
filosofia com
autonomia, mas sem conceber a dependência. Ora, penso
que o
pensamento complexo
deve ligar a autonomia e a dependência.
A nossa educação nos
habituou a uma concepção linear da causalidade. Temos
causas que produzem
efeitos. Ora, uma das idéias mais importantes que
me
parecem ter surgido nos
últimos 50 anos foi a da circularidade, cristalizada pela
primeira vez por um
especialista em cibernética. Para compreender a idéia de cir-
cularidade retroativa,
podemos imaginar um sistema de aquecimento central: uma
caldeira alimenta os
radiadores; quando se atingiu a temperatura desejada, um
termos tato faz
parar o funcionamento da caldeira; se a temperatura
baixa, o
termos tato faz
funcionar a caldeira de novo. Há, em conseqüência, um sistema
onde o efeito atua
retroativamente sobre a causa.
Passamos de uma
visão linear a uma visão circular. A causalidade
retroativa
possibilita
compreender um fenômeno de autonomia térmica: quando
faz frio lá
fora, o compartimento
fica quente e, paradoxalmente, quanto mais frio faz lá fora,
mais quente fica o
interior do compartimento. Esta autonÓmia, provocada pela re-
gulação
(circularidade retroativa), é ela própria produzida por
uma circularidade
mais intensa,
chamada circularidade autoprodutiva. Em que
consiste esta
circularidade?
Consiste no fato de produtos e efeitos serem
necessários ao
produtor e ao causador.
Tomemos dois
exemplos: a vida e a sociedade. A vida é um
sistema de
reprodução que produz
os indivíduos. Somos produtos da reprodução dos nossos
pais. Mas, para que
este processo de reprodução continue, é necessário que nós
próprios nos
tomemos produtores e reprodutores de nossos
filhos. Somos,
portanto, produtos e
produtores no processo da vida. Da mesma maneira. somos
produtores da
sociedade porque sem indivíduos humanos não
existiria a
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sociedade mas, uma vez
que a sociedade existe, com a sua cultura, com os seus
interditos, com as suas
normas, com as suas leis, com as suas regras, produz-
nos como indivíduos e,
uma vez mais, somos produtos produtores.
Produzimos a
sociedade que nos produz. Ao mesmo tempo, não
devemos
esquecer que somos não
só uma pequena parte de um todo, o todo social, mas
que esse todo está no
interior de nós próprios, ou seja, temos as regras sociais, a
linguagem social, a
cultura e normas sociais em nosso interior. Segundo
este
princípio, não só a
parte está no todo como o todo está na parte. Isto acarreta
conseqüências muito
importantes porque, se quisermos julgar qualquer coisa, a
nossa sociedade ou uma
sociedade exterior, a maneira mais ingênua de o fazer é
crer (pensar) que
temos o ponto de vista verdadeiro e objetivo da
sociedade,
porque ignoramos
que a sociedade está em nós e ignoramos que somos
uma
pequena parte da
sociedade. Esta concepção de pensamento dános uma lição de
prudência, de método
e de modéstia.
Devo indicar, neste
momento da minha exposição, que o pensamento complexo
nos abre o
caminho para compreender melhor os problemas
humanos. Em
primeiro lugar,
não devemos esquecer que somos seres trinitários,
ou seja,
somos triplos em um só.
Somos indivíduos, membros de uma espécie biológica
chamada Homo Sapiens, e
somos, ao mesmo tempo, seres sociais. Temos estas
três naturezas numa
só. Penso que é importante sabê-Io porque, de uma maneira
geral, o nosso modo de
pensamento mais habitual nos toma difícil conceber um
elo entre estas
três naturezas e saber se existe unidade na
humanidade ou
diversidade,
heterogeneidade e, conseqüentemente, ausência de unidade. Tema
polêmico a partir do
século XVIII. Há quem diga que a natureza humana é una, e
que os chineses ou
africanos têm uma natureza igual à nossa e por isso, como
nós, amores,
tristezas, alegrias, felicidades. Outros pensadores,
como os
culturalistas, dizem
que somos diferentes de cultura para cultura, não
existindo
verdadeira unidade
humana.
Foi muitas vezes
difícil fazer compreender que o "um" pode ser "múltiplo",
e que
o "múltiplo"
é suscetível de unidade. Que, por exemplo, do ponto de vista do ser
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humano, há
certamente unidade genética, que todos os seres humanos
têm o
mesmo patrimônio
genético e há unidade cerebral; por essa razão,
todos os
seres humanos têm as
mesmas atitudes cerebrais fundamentais. É também certo
que os seres
humanos têm uma identidade profunda pelo fato
de poder
desenvolver a sua
nacionalidade e por serem afetivos, capazes, todos eles, de
sorrir, de rir e de
chorar. A observação de um etólogo alemão sobre uma jovem
surda, muda e cega de
nascença demonstrou que, por ela rir, chorar e sorrir, não
tinha aprendido,
através do seu meio cultural, estas manifestações afetivas.
Há, logo, a
unidade fundamental do ser humano; mas, ao mesmo
tempo,
sabemos que certas
civilizações inibem as lágrimas, enquanto outras permitem a
sua expressão; que
sorrimos em condições diferentes numas e noutras; o riso, as
lágrimas e o
sorriso são diferentemente modulados segundo as
culturas, mas
devemos saber
sobretudo que, a partir da mesma estrutura
fundamental da
linguagem, se
criou uma diversidade inacreditável de línguas ao
longo do
desenvolvimento
da espécie humana, e que as culturas geraram
riquezas
extraordinárias; o
tesouro da humanidade é a sua diversidade. esta não
só é
compatível com a
unidade fundamental, mas produzida pelas possibilidades
do
ser humano.
Compreender a unidade
e a diversidade é muito importante hoje, visto estarmos
num processo de
mundialização que leva a reconhecer a unidade dos problemas
para todos os
seres humanos onde quer que estejam; ao mesmo
tempo, é
preciso preservar
a riqueza da humanidade, ou seja, a diversidade
cultural;
vemos, por exemplo, que
as diversidades não são só as das nações, mas estão
também no interior
destas; cada província, cada região, tem a sua singularidade
cultural, a qual deve
guardar ciosamente.
Há, no mesmo sentido,
o problema com o qual estive confrontado quando quis
escrever meu livro
"O Homem e a morte": a multidimensionalidade
humana. A
interrogação que me
coloquei desde o início foi a seguinte: O homem btá, como
todos os seres
biológicos, submetido à morte; por isso, no domínio da morte, é
semelhante a todos os
outros seres vivos; mas o homem é o único ser vivo que
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acredita existir uma
vida após a morte, que pratica ritos fúnebres, que tem uma
mitologia da morte,
porque acredita que a morte existe, quer um renascimento,
quer a
sobrevivência de um fantasma, quer a ressurreição,
etc. A realidade
humana é. pois,
por um lado, biológica e, por outro, autobiológica,
quer dizer,
mitológica.
Um dos traços
importantes do meu trabalho foi deixar de subestimar os aspectos
imaginário e
mitológicos do ser humano. Algo que me tinha
deveras
impressionado quando
assisti a uma cerimônia de Candomblé no Brasil, e da qual
participei, foi
constatar que, num momento determinado, os
participantes, os
crentes, invocam os
espíritos ou deuses tais como Iemanjá; num dado momento,
um dos espíritos
encama num dos participantes e fala através deste. Além disso,
é possível a presença
de vários espíritos. O que significa tudo isto? Significa que
os deuses têm
uma existência real; essa existência é-lhes
conferida pela
comunidade dos
crentes, pela fé, pelo rito. Mas uma vez que o
deus existe, é
capaz de nos possuir, e
é essa a relação particular que nutrimos com os "deuses",
ou com o nosso "Deus",
ou as com nossas idéias.
Isso significa ainda
que damos vida às nossas idéias e, uma vez que lhes damos
vida, são elas que
indicam o nosso comportamento, que nos mandam matar ou
morrer por elas; vale
dizer que tais produtos são os nossos próprios produtores, e
que as realidades
imaginária e mitológica são um aspecto fundamental da reali-
dade humana.
Do mesmo modo, penso
que devemos considerar a história humana de maneira
complexa. Ora,
entre as maneiras não complexas de considerar a
história
humana, a primeira foi
a de que esta era uma sucessão de batalhas, de golpes de
Estado, de mudanças de
reino, de acontecimentos importantes, de acidentes, de
guerras. Uma segunda
maneira consistiu em julgar que os acidentes, as guerras,
as mudanças de reino,
eram acontecimentos superficiais enquanto, na realidade,
existiria um movimento
ascendente, o do progresso; as leis da história estariam
escritas no decurso da
humanidade e, se surgissem acidentes, seriam provisórios.
Primeiramente, é
necessário unir estas duas concepções: a dos acidentes, das
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perturbações, aquilo
que Shakespeare chamou "o barulho e o furor" e, por outro
lado, as
determinações, os determinismos. Isto se aplica também
à história do
Universo, que começamos
a conhecer como uma história que nasceu, talvez, de
uma catástrofe
gigantesca, da qual surgiu o nosso mundo, criado
através de
enormes destruições,
porque se pensa que desde o início a matéria provocou o
genocídio da
antimatéria ou, ao menos, essa antimatéria
desapareceu. Em
seguida, houve o choque
das estrelas, a colisão das galáxias, explosões...
Ora, o mundo produz,
por um lado, galáxias, estrelas, ordem no céu e, ao mesmo
tempo, forma-se por
entre a desordem; da mesma maneira, a história da terra é
uma história
atormentada. Pensa-se que, na origem, foram os detritos de um sol
anterior que explodiu
que se aglomeraram, tendo-se, a partir daí, produzido um
fenômeno de
auto-organização da terra, com, num dado
momento, o
aparecimento da
primeira célula viva. Mas a verdadeira história da vida ocorreu
através de convulsões
e catástrofes; houve um acidente no final da era primária
em que 97% das espécies
vivas dessa época desapareceram; houve o famoso
acidente em que os
dinossauros morreram, e que parece ser a conseqüência de
um meteorito
conjugado com uma enorme explosão vulcânica. A
história da
nossa terra é
acidental, e através desses acidentes houve a
extraordinária
proliferação de
formas vegetais e animais, das quais, de um ramo de um ramo de
um ramo... da evolução
animal surgiu o ser humano e, finalmente, a consciência
humana.
O sentido da evolução
não era o de produzir por todo lado a consciência. Foi o
ramo de um ramo de um
ramo que produziu a humanidade. Somos, portanto, um
produto "desviado"
da história do mundo; isto nos permite compreender
que a
evolução não é
qualquer coisa que avança frontalmente, majestosamente, como
um rio, mas parte
sempre de um "desvio" que começa e
consegue impor-se,
toma-se uma grande
tendência e triunfa, o que se aplica à história das idéias; no
início, Moisés é um
egípcio "desencaminhado" ou "desviado" que se
afastou da
sua religião
quando fundou o judaísmo; o "desencaminhamento"
de Jesus foi
acrescido pelo de
Paulo, quando este disse não haver nem judeus, nem gentios.
Maomé, Karl Marx
e Lutero foram seres "desencaminhados" ou
"desviados";
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certos
"desencaminhamentos" enraízam-se e
transformam-se em tendências
fortes.
Isso deve tornar
mais complexa a nossa visão da história e
levar-nos a
compreender a incerteza
do nosso tempo, visto que não há progresso necessário
e inelutável; sabemos
que todos os progressos adquiridos podem ser destruídos
pelos nossos
inimigos mais implacáveis: nós mesmos, dado
que hoje a
humanidade é a
maior inimiga da humanidade. Sabemos, atualmente, que o
progresso deve ser
regenerado; sabemos ainda que a barbárie constitui
uma
ameaça, e
vivemos mais do que nunca na incerteza, porque
ninguém pode
adivinhar o que
será o dia de amanhã. O nosso destino é, pois,
incerto, e
ninguém sabe qual o
destino do Cosmos.
Devemos, porém,
poder situar-nos nesta incerteza. A nossa situação é,
em
virtude desta
constatação, extremamente complexa, porque
somos,
integralmente,
filhos do Cosmos e estranhos a esse mesmo Cosmos.
Poderia
exemplificar com o
organismo humano, mas vou tomar simplesmente o exemplo
de um copo de vinho do
Porto. Se pegarem um copo de vinho do Porto e o inter-
rogarem, podem ter a
certeza de que nesse vinho do Porto há partículas que se
formaram nos
primeiros segundos do Universo, ou seja, há cerca de
sete a
quinze milhões de
anos; há também o hidrogênio, um dos primeiros elementos a
ser formado no
Universo, e produtos do átomo do carbono, formado quando da
existência do sol
anterior ao nosso. No copo de vinho do Porto, há a conjugação
de macromoléculas que
se juntaram na terra para dar origem à vida e há ainda a
evolução do
mundo vegetal, a evolução animal, até o homem, e
a evolução
técnica que
permitiu ao ser humano extrair o sumo da uva e
transformá-I o,
através da
fermentação, em vinho. Hoje, existem técnicas mais evoluídas,
mais
sofisticadas, da
informática, que permitem controlar, nos
depósitos, a
fermentação desse
vinho que vai transformar-se em vinho do Porto. Dito de outra
maneira, num copo
de vinho do Porto temos toda a história do Cosmos
e,
simultaneamente, a
originalidade de uma bebida encontrada apenas na região
do Douro.
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Somos filhos da
natureza viva da terra e estrangeiros a nós próprios.
Esta
reflexão leva-nos
a abandonar a idéia que considerava o ser humano
como
centro do mundo,
mestre e dominador da natureza, defendida por
grandes
filósofos
ocidentais como Bacom, Descartes, Buffon, Karl Marx.
Hoje, essa
ambição parecenos
completamente irrisória, porque vivemos num planeta minús-
culo, satélite de
um pequeno sol de segunda classe, que faz parte de
uma
galáxia extremamente
periférica; estamos, por essa razão, perdidos no Universo.
Mas, se devemos
abandonar a visão que faz do homem o centro do
mundo,
devemos salvaguardar a
visão humanista que nos ensina que é necessário salvar
a humanidade e
civilizar a terra. Abandonemos a missão de Prometeu e tomemo-
nos seres terrestres,
quer dizer, cidadãos da terra, o que nos remete à idéia por
mim desenvolvida no
livro Terra-Pátria; para compreendê-Ia, é necessário refletir
sobre a palavra
"Pátria". A palavra "Pátria" significa
três coisas: identidade
comum, comunidade de
origem, do destino e de idéias.
•
Identidade comum, como já tive a ocasião de referir.
•
Comunidade de origem e comunidade de destino, segundo os
dados
do conhecimento da hominização e da pré-história:
parece
haver
uma origem comum da humanidade - o continenteAfricano. É
possível
que o "HomoSapiens" tenha partido da África e povoado o
mundo,
assim como é possível que os antepassados do
"Homo
Sapiens",
através do processo de mestiçagem, tenham suscitado na
Europa,
na Ásia e na África, o aparecimento da nossa
espécie; de
qualquer
maneira, há uma comunidade de origem pertencente ao
ramo
particular da evolução dos seres vivos. Comunidade de destino:
fazer
parte de uma Pátria significa participar de um destino comum;
ora, esse
destino relacionado com a pátria é um destino que nos vem
do
passado. Participa-se da Pátria Portuguesa porque se aprende a
história
de Portugal e tomase parte nas suas dificuldades, nos seus
sofrimentos, nas suas grandezas e nas suas glórias; incorpora-se o
destino
comum dos antepassados. A idéia de comunidade de destino
terrestre
é uma idéia recente. Vem da era planetária, quer dizer, do
momento
em que os fragmentos dispersos da
humanidade
começaram
a encontrar-se; no início, de maneira
extremamente
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violenta
e brutal, através das conquistas e da colonização.
Hoje,
todos
os seres humanos, apesar de viverem situações
diferentes,
têm os
mesmos problemas fundamentais de vida e morte. Temos
necessidade de nos proteger de desastres que podem
destruir o
homem.
. Comunidade de
idéias: esta noção faz-nos abandonar a alternativa
banal
segundo a qual, no caso
de sermos cosmopolitas, não teríamos raízes e, no caso
de termos Pátria,
seria uma Pátria singular fechada sobre ela própria.
A idéia de
"Terra-Pátria" não nos desenraíza, ao contrário;
estamos enraizados
em nosso destino
terrestre, o qual engloba e respeita todas as Pátrias. Podemos
ser membros de várias
Pátrias concêntricas. Sinto-me profundamente membro da
pátria francesa,
mediterrâneo, europeu e cidadão da Terra. Podemos
viver di-
ferentes Pátrias de
maneira concêntrica em vez de negar uma, privilegiando outra.
O pensamento complexo
conduz-nos a lima série de problemas fundamentais do
destino humano, que
depende, sobretudo, da nossa capacidade de compreender
os nossos
problemas essenciais, contextualizando-os,
globalizando-os, in-
terligando-os: e da
nossa capacidade de enfrentar a incerteza e de encontrar os
meios que nos permitam
navegar num futuro incerto, erguendo ao alto a nossa
coragem e a nossa
esperança.
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Vencer a especialização
Enquanto a
cultura geral comportava a possibilidade de
buscar a
contextualização de
toda informação ou idéia, a cultura científica e
técnica, por
causa de sua
característica disciplinar e especializada, separa e compartimenta
os saberes, tomando
cada vez mais difícil a colocação destes num
contexto
qualquer. Além disso,
até a metade do século XX, a maioria das ciências tinha
por método de
conhecimento a redução (do conhecimento de um
todo ao
conhecimento
das partes que o compõem), por conceito
fundamental o
determinismo, isto é,
a ocultação do acaso, do novo, da invenção, e a aplicação
da lógica mecânica da
máquina artificial aos problemas vivos, humanos e sociais.
A especialização
abstrai, extrai um objeto de seu contexto e de seu
conjunto,
rejeita os laços
e a intercomunicação do objeto com o seu meio,
insere-o no
compartimento
da disciplina, cujas fronteiras quebram
arbitrariamente a
sistemicidade (a
relação de uma parte com o todo) e a multidimensionalidade dos
fenômenos, e
conduz à abstração matemática, a qual opera uma
cisão com o
concreto, privilegiando
tudo aquilo que é calculável e formalizável.
Assim, a economia, a
ciência social matematicamente mais avançada, é também
a ciência social
e humanamente mais fechada, pois se abstrai das
condições
sociais,
históricas, políticas, psicológicas, ecológicas, etc,
inseparáveis das
atividades econômicas.
Por isso, os seus experts são cada vez mais incapazes
de prever e de predizer
o desenvolvimento econômico, mesmo a curto prazo.
O conhecimento deve
certamente utilizar a abstração, mas procurando construir-
se em referência a um
contexto. A compreensão de dados particulares exige a
ativação da
inteligência geral e a mobilização dos conhecimentos
de conjunto.
Marcel Mauss dizia: "É
preciso recompor o todo". Acrescentemos: é preciso mo-
bilizar o todo. Certo,
é impossível conhecer tudo do mundo ou captar todas as
suas multiformes
transformações. Mas, por mais aleatório e difícil
que seja, o
conhecimento dos
problemas essenciais do mundo deve ser tentado para evitar a
imbecilidade
cognitiva. Ainda mais que o contexto, hoje, de todo
conhecimento
político,
econômico, antropológico, ecológico, etc, é o
próprio mundo. Eis o
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problema universal para
todo cidadão: como adquirir a possibilidade de articular e
organizar as
informações sobre o mundo. Em verdade, para
articulá-Ias e
organizá-Ias,
necessita-se de uma reforma de pensamento.
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sa racionalidade
A falsa
racionalidade - a racionalização abstrata e
unidimensional- triunfa
atualmente por
toda parte. As mais monumentais obras-primas
dessa
racionalidade
tecnoburocrática foram realizadas na URSS, onde, por
exemplo,
desviaram-se o curso
dos rios para irrigar nas horas mais quentes hectares sem
árvores de cultivo de
algodão, gerando a salinização do solo, a volatilização das
águas
subterrâneas, o esgotamento do mar de Aral.
Infelizmente depois do
desabamento do
Império, os novos dirigentes recorreram a experts
liberais do
Oeste que, ignorando
deliberadamente a necessidade de instituições, de leis e de
regras numa
economia competitiva de mercado, não elaboram a
indispensável
estratégia
complexa. Entretanto, Maurice Allais - economista
liberal - havia
indicado que
seria necessário planificar a desplanificação e
programar a
desprogramação. O
resultado de tudo isso são as catástrofes humanas,
cujas
vítimas não são
contabilizadas e não têm as garantias dos atingidos
pelas
catástrofes naturais.
A inteligência
parcelar, compartimentada, mecânica, disjuntiva,
reducionista,
quebra o complexo do
mundo, produz fragmentos, fraciona os problemas, separa
o que é ligado,
uni dimensionaliza o multidimensional. Trata-se de
uma
inteligência ao
mesmo tempo míope, presbita, daltônica, zarolha.
Elimina na
casca todas as
possibilidades de compreensão e de reflexão, matando
assim
todas as chances de
julgamento corretivo ou de visão a longo termo. Quanto mais
os problemas se
tomam multidimensionais, mais há incapacidade para
pensar
essa
multidimensionalidade; quanto mais a crise avança,
mais progride a
incapacidade de
pensá-Ia; quanto mais os problemas se tomam planetários, mais
se tornam impensados.
Incapaz de considerar o contexto e o complexo planetário,
a inteligência cega
produz inconsciência e irresponsabilidade.
Compreendemos então
um problema essencial: complementar o pensamento
que separa com
outro que une. Complexus significa originariamente o que
se
tece junto. O
pensamento complexo, portanto, busca distinguir (mas não separar)
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Para navegar no século XXI – Tecnologias do Imaginário e
Cibercultura
e ligar. Ao mesmo
tempo, impõe-se, como vimos acima, outro problema crucial:
tratar a incerteza. Por
quê? Porque por toda parte, nas ciências, o dogma de um
determinismo universal
desabou, enquanto a lógica, chave-mestra da certeza do
raciocínio, revelou
incertezas na indução, impossibilidades de
decisão na
dedução e
limites no princípio do terceiro incluído. Assim, o
objetivo do
pensamento complexo
é ao mesmo tempo unir (contextualizar e globalizar)
e
aceitar o desafio da
incerteza. Como?
Princípios
Podemos
estabelecer alguns princípios, complementares e
interdependentes,
como guias para pensar
a complexidade.
1.
Princípio sistêmico ou organizacional: liga o
conhecimento
das
partes ao conhecimento do todo, conforme a ponte indicada por
Pascal e
mencionada antes: "Tenho por impossível conhecer o todo
sem
conhecer as partes, e conhecer as partes sem conhecer o todo".
A idéia
sistêmica, oposta à reducionista, entende que "o todo é mais
do que
a soma das partes". Do átomo à estrela, da
bactéria ao
homem e
à sociedade, a organização do todo produz qualidades ou
propriedades novas em relação às partes
consideradas
isoladamente: as emergências. A organização do
ser vivo gera
qualidades desconhecidas de seus componentes
físico-químicos.
Acrescentemos que o todo é menos do que a soma das partes, cujas
qualidades são inibidas pela organização de conjunto.
2.
Princípio "hologramático" (inspirado no
holograma, no
holograma, no qual cada ponto contém a quase
totalidade da
informação do objeto representado): coloca em evidência o aparente
paradoxo
dos Sistemas complexos, onde não somente a parte está
no
todo, mas o todo se inscreve na parte. Cada célula
é parte do
todo
-organismo global- mas o próprio todo está na
parte: a
totalidade do patrimônio genético está presente em
cada célula
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individual; a
sociedade como todo, aparece em cada indivíduo,
através da linguagem,
da cultura, das normas.
3. Princípio
do anel retroativo: introduzido por Norbert Wiener,
permite o
conhecimento dos processos de auto-regulação. Rompe
com o princípio de
causalidade linear: a causa age sobre o efeito, e
este sobre a
causa, como no sistema de aquecimento no qual o
termostato regula
a situação da caldeira. Esse mecanismo de
regulação permite a
autonomia do sistema, neste cnso, a autonomia
térmica de um
apartamento em relação ao frio exterior. De maneira
mais complexa,
a "homeostase" de um organismo vivo é
um
conjunto de
processos reguladores fundados sobre múltiplas
retroações. O
anel de retroação (ou feedback) possibilita, na sua
forma negativa, reduzir
o desvio e, assim, estabilizar um sistema. Na
sua forma mais
positiva, o feedback é um mecanismo amplificador;
por exemplo, na
situação de apogeu de um conflito: a violência de
um protagonista
desencadeia uma reação violenta que, por sua vez,
determina outra
reação ainda mais violenta. Inflacionistas ou
estabilizadoras,
as retroações são numerosas nos fenômenos
econômicos, sociais,
políticos ou psicológicos.
4. Princípio do
anel recursivo: supera a noção de regulação com
a de autoprodução e
auto-organização. É um anel gerador, no qual
os produtos e os
efeitos são produtores e causadores do que os
produz. Nós,
indivíduos, somos os produtos de um sistema de
reprodução oriundo do
fundo dos tempos. mas esse sistema só pode
reproduzir-se se
nós mesmos nos tomamos produtores pelo
acasalamento. Os
indivíduos humanos produzem a sociedade nas -
e através de -
suas interações, mas a sociedade, enquanto todo
emergente, produz a
humanidade desses indivíduos aportando-lhes
a linguagem e a
cultura.
5. Princípio
de auto-eco-organização (autonomia/dependência):
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os seres vivos
são auto-organizadores que se autoproduzem
incessantemente, e
através disso despendem energia para salva-
guardar a própria
autonomia. Como têm necessidade de extrair
energia, informação
e organização no próprio meio ambiente, a
autonomia deles é
inseparável dessa dependência, e torna-se im-
perativo concebê-Ios
como auto-eco-organizadores. O princípio de
auto-eco-organização
vale evidentemente de maneira específica
para os humanos,
que desenvolvem a sua autonomia na depen-
dência da cultura, e
para as sociedades que dependem do meio geo-
ecológico.
Um aspecto
determinante da auto-eco-organização é que esta se
regenera em
permanência a partir da morte de suas
células,conforme a
fórmula de Heráclito, "viver de morte, morrer de
vida", e que as
duas idéias antagônicas de morte e de vida são aí
complementares, mesmo
permanecendo antagônicas.
6. Princípio
dialógico: vem justamente de ser ilustrado pela
fórmula heraclitiana.
Une dois princípios ou noções devendo excluir
um ao outro, mas que
são indissociáveis numa mesma realidade.
Deve-se conceber
uma dialógica ordem/desordem/organização
desde o nascimento do
universo: a partir de uma agitação calorífica
(desordem) onde,
em certas condições (encontros ao acaso),
princípios de
ordem permitirão a constituição de núcleos, átomos,
galáxias e
estrelas. Tem-se ainda essa dialógica quando da
emergência da vida
através dos encontros entre macromolécuIas no
interior de uma espécie
de anel autoprodutor, que terminará por se
tornar
auto-organização viva. Sob as formas mais
diversas, a
dialógica entre a
ordem, a desordem e a organização, através de
inumeráveis
inter-retroações, está constantemente em ação
nos
mundos físico,
biológico e humano.
A dialógica permite
assumir racionalmente a associação de noções
contraditórias para
conceber um mesmo fenômeno complexo. Niels
Bohr reconheceu, por
exemplo, a necessidade de ver as partículas
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físicas
ao mesmo tempo como corpúsculos e como
ondas. Nós
mesmos
somos seres separados e autônomos, fazendo parte de
duas
continuidades inseparáveis, a espécie e a sociedade. Quando
se
considera a espécie ou a sociedade, o indivíduo
desaparece;
quando
se considera o indivíduo, a espécie e a
sociedade
desaparecem. O pensamento complexo assume dialogicamente
os
dois
termos que tendem a se excluir.
7.
Princípio da reintrodução daquele que conhece
em todo
conhecimento: esse princípio opera a restauração do
sujeito e ilu-
mina
a problemática cognitiva central: da percepção à
teoria ci-
entífica, todo conhecimento é uma
reconstrução/tradução por um
espírito/cérebro numa certa cultura e num determinado tempo.
Eis alguns dos
princípios que guiam os procedimentos cognitivos do pensamento
complexo. Não se
trata, de forma alguma, de um pensamento que expulsa
a
certeza com a
incerteza, a separação com a inseparabilidade, a
lógica para
autorizar-se todas as
transgressões. A démarche consiste, ao contrário, num ir e
vir constantes entre
certezas e incertezas, entre o elementar e o global, entre o
separável e o
inseparável. Ela utiliza a lógica clássica e os
princípios de
identidade, de
não-contradição, de dedução, de indução, mas
conhece-Ihes os
limites e sabe que, em
certos casos, deve-se transgredi-Ios. Não se trata portanto
de abandonar os
princípios de ordem, de separabilidade e de lógica -
mas de
integrá-Ios numa
concepção mais rica. Não se trata de opor um holismo global
vazio ao
reducionismo mutilante. Trata-se de repor as partes na
totalidade, de
articular os
princípios de ordem e de desordem, de separação e
de união, de
autonomia e de
dependência, em dialógica (complementares,
concorrentes e
antagônicos) no
universo.
Em suma, o
pensamento complexo não é o contrário do
pensamento
simplificador, mas
integra este; como diria Hegel, ele opera a
união da
simplicidade e da
complexidade e, mesmo no metassistema
constituído, faz
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aparecer a sua
própria simplicidade. O paradigma da complexidade pode
ser
enunciado não menos
simplesmente que o da simplificação: este impõe separar e
reduzir; aquele une
enquanto distingue.
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O pano de fundo
filosófico
Encontram-se, na
história da filosofia ocidental e oriental, numerosos elementos e
premissas de um
pensamento da complexidade. Desde a
Antigüidade, o
pensamento
chinês funda-se sobre a relação dialógica
(complementar e
antagônica) entre
o yin e o yang e, segundo Lao Tsé, a união
dos contrários
caracteriza a
realidade. No século XVII, Fang Yizhi formula um
verdadeiro
princípio de
complexidade. No Ocidente, Heráclito estabeleceu a necessidade de
associar termos
contraditórios. Na idade clássica, Pascal é o pensador chave da
complexidade. Mais
tarde. Kant pôs em evidência os limites e as
"aporias" da
razão. Leibniz formula
o princípio da unidade complexa da unidade do múltiplo.
Spinoza aporta
a idéia de autoprodução do mundo. Em Hegel,
essa au-
toconstituição
torna-se o romance épico no qual o espírito emerge
da natureza
para atingir a sua
realização, e sua dialética, prolongada pela de Marx, anuncia a
dialógica.
Nietzsche anunciou a crise dos fundamentos da
certeza. No
metamarxismo, tem-se,
com Adorno, Horkheimer e o Lukács tardio, não somente
numerosos elementos
de uma crítica da razão clássica, mas muitos
alimentos
para uma concepção da
complexidade.
No século XIX,
enquanto a ciência ignorava o individual, o singular, o concreto e
o histórico, a
literatura e singularmente o romance revelaram a
complexidade
humana, de Balzac a
Dostoievski e Proust.
Na época
contemporânea, o pensamento complexo elabora-se nos
interstícios
das disciplinas, a
partir de pensadores matemáticos (Wiener, von Neumann, von
Foerster),
especialistas em termodinâmica (Prigogine), biofísicos (Atlan),
filósofos
(Castoriadis). As duas
revoluções científicas do século só podiam estimulá-lo. A
primeira revolução
introduz a incerteza com a termodinâmica, a física quântica e
a cosmofísica,
desencadeando as reflexões epistemológicas de Popper,
Kuhn,
Holton, Lakatos.
Feyerabend; estes mostraram que a ciência não era a certeza,
mas a hipótese; que
uma teoria provada não o era definitivamente, e permanecia
"falseável",
que havia do não-científico (postulados, paradigmas,
themata) no
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coração da própria
cientificidade.
A segunda revolução
científica - mais recente, ainda inacabada -, a
revolução
sistêmica, introduz a
organização nas ciências da terra e a ciência ecológica; ela
se prolongará, sem
dúvida, em revolução d.: auto-eco-organização na biologia e
na sociologia.
O pensamento
complexo é, portanto, essencialmente aquele que trata
com a
incerteza e
consegue conceber a organização. Apto a
unir,contratualizar,
globalizar, mas
ao mesmo tempo a reconhecer o singular, o
individual e o
concreto.
O pensamento
complexo não se reduz nem à ciência, nem à
filosofia, mas
permite a comunicação
entre elas, servindo-Ihes de ponte. O modo complexo de
pensar não tem
utilidade somente nos problemas organizacionais,
sociais e
políticos, pois um
pensamento que enfrenta a incerteza pode
esclarecer as
estratégias no nosso
mundo incerto; o pensamento que une pode iluminar uma
ética da religação
ou da solidariedade. O pensamento da complexidade tem
igualmente seus
prolongamentos existenciais ao postular a compreensão entre os
homens.
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Por uma reforma da
universidade do pensamento
A complexidade exige
uma reforma de pensamento, o que pressupõe mudar a
universidade. Como
fazê-Ia? Há uma dupla missão: a universidade
deve se
adaptar à
sociedade ou a sociedade deve se adaptar à
universidade? Todos
adivinharão que
recusarei a escolha e tentarei ultrapassá-Ia de forma complexa.
Ainda que tenha
antecedentes em Bagdá e em Fez, a universidade, como
se
disse com
freqüência, é o grande presente da Europa medieval
à Europa
moderna. Em menos de
dois séculos, uma constelação de universidades jorrou
de Bolonha a
Upsala, de Coimbra a Praga. A universidade é
conservadora,
regeneradora,
geradora. Conserva, memoriza, integra, ritualiza um
patrimônio
cognitivo; regenera-o
pelo reexame, atualizando-o, transmitindo-o; gera saber
e
cultura que entram
nessa herança.
A esse título, a
universidade tem uma missão e uma função transecular que, via
presente, vai do
passado para o futuro; missão transnacional que
guardou a
despeito da
tendência ao fechamento nacionalista das nações
modernas. E
dispõe de uma
autonomia que lhe permite realizar essa missão. .
Segundo os dois
sentidos do termo conservação, o caráter conservador
da
universidade pode
ser vital ou estéril. A conservação é vital se ela
significa
salvaguarda e
preservação, pois só se pode preparar um futuro
salvando um
passado, e
estamos num século em que múltiplas e potentes
forças de
desintegração
cultural atuam. Mas a conservação é estéril se
dogmática,
congelada, rígida.
Assim, a Sorbonne condenou todos os progressos científicos
do século XVII,
e a ciência moderna formou-se em grande parte
fora das
universidades ao longo
desse século.
Mas a universidade
soube responder ao desafio do desenvolvimento das ciências
operando sua grande
mutação no século XIX. Ela se laicizou, isto é, abriu-se à
grande
problematização generalizada e fundamental oriunda do
Renascimento,
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que diz respeito ao
mundo, à natureza, à vida, ao homem, a Deus. A universidade
tomou-se o lugar por
excelência da problematização, recolhendo nela a essência
da cultura européia
moderna, e através disso se inscreveu mais profundamente
na sua missão
transecular, reatando com a antigüidade grega e
romana, e
inclinando-se para um
futuro cognitivo a descobrir ou conquistar.
A primeira mutação
institucional se opera em Berlim, em 1809, quando Humboldt
conta com o apoio de um
"déspota esclarecido". A laicização é a base da
reforma;
ela estabelece a
autonomia da universidade em relação à religião e
ao poder;
instaura a liberdade
interior (o princípio da livre consciência); instala de maneira
geral a
problematização.
A reforma introduz as
ciências modernas, com a criação de departamentos que
vão se multiplicar com
as novas ciências. A universidade vai desde então fazer
coexistir -
infelizmente apenas coexistir, e não comunicar - duas
culturas, a
cultura das humanidades
c a cultura da cientificidade.
Ao criar os
departamentos, Humboldt tinha muito bem visto o caráter transecular
da integração das
ciências na universidade. Para ele, a universidade não podia
ter por vocação
direta uma formação profissional (conveniente para as
escolas
técnicas), mas uma
vocação indireta pela formação de uma atitude de pesquisa.
De onde a dupla
função paradoxal da universidade: adaptar-se à
modernidade
científica e
integrá-Ia, responder às necessidades fundamentais de
formação,
fornecer professores
às novas profis sões técnicas e outras... mas
também
fornecer um ensino
metaprofissional, metatécnico.
Aqui, reencontramos a
missão transecular pela qual a universidade conclama a
sociedade a adotar sua
mensagem e suas normas:
1.
Inocular na sociedade uma cultura que não é feita para
as formas provisórias
ou efêmeras do hic et nunc, mas que é, contudo, feita para
ajudar os cidadãos a
viver o destino hic et nunc.
2. Defender,
ilustrar e promover no mundo social e político os
valores
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intrínsecos
à cultura universitária: autonomia da
consciência,
problematização
(com sua conseqüência, que é a manutenção da pesquisa
aberta e
plural), primado da verdade sobre a utilidade, a
ética do
conhecimento.
3. De
onde a vocação expressa na dedicatória do
frontão da
Universidade de
Heidelberg: "Ao espírito vivo".
Há
complementaridade e antagonismo entre as duas
missões: adaptar-se à
sociedade e adaptar
a si a sociedade - uma remete a outra, num
círculo que
deveria ser produtivo.
Não se trata somente de modernizar a cultura, trata-se de
culturalizar a
modernidade.
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Os desafios do século
XX
O século XX impôs
vários desafios à dupla missão.
Há antes de tudo a
pressão superadaptativa que força a conformar o ensino e
a pesquisa às
demandas econômicas, técnicas, administrativas do momento, a
se conformar aos
últimos métodos, às últimas receitas no mercado, a reduzir o
ensino geral, a
marginalizar a cultura humanista. Ora, sempre na vida
e na
história, a
superadaptação a condições dadas foi não signo de vitalidade,
mas
anúncio de
senilidade e de morte, pela perda da substância
inventiva e
criadora.
Existe, além disso,
a compartimentação e a disjunção entre cultura humanista e
cultura científica,
acompanhadas pela compartimentação entre as diferentes
ciências e
disciplinas. A não comunicação entre as duas
culturas determina
graves conseqüências
para ambas. A cultura humanista revitaliza as obras do
passado; a
cultura científica só valoriza as aquisições do
presente. A cultura
humanista é uma
cultura geral que, via filosofia, ensaio, romance,
expõe os
problemas humanos
fundamentais e reclama a reflexão. A cultura
científica
suscita um pensamento
fadado à teoria, mas não uma reflexão sobre o destino
humano e sobre o
futuro da própria ciência. A fronteira entre as duas culturas
atravessa, de um
extremo a outro, a sociologia, mas esta se deixa esquartejar
em vez de tentar uma
ponte de ligação.
Tudo isso
exige uma reforma do pensamento. O saber
medieval era
demasiado bem
organizado e podia tomar a forma de uma "suma" coerente. O
saber contemporâneo
é disperso, separado,fechado. Já há uma reorganização
do saber em curso. A
ecologia científica, as ciências da terra, a cosmologia, etc,
são ciências
pluridisciplinares que têm por objeto não um território ou um
setor,
mas um sistema
complexo: o ecossistema e, mais amplamente, a biosfera para
a ecologia, o sistema
terra para as ciências da terra e, para a cosmologia, a
estranha propensão
do universo a formar e arruinar os sistemas galácticos e
solares.
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Por toda parte, se
reconhece a necessidade de interdisciplinaridade, esperando
o reconhecimento da
relevância da transdisciplinaridade, seja para o estudo da
saúde, da velhice, da
juventude, das cidades... mas a transdisciplinaridade só é
uma solução no caso
de uma reforma do pensamento. É preciso substituir um
pensamento que
separa por um pensamento que une, e essa ligação
exige a
substituição da
causalidade uni linear e unidimensional por uma causalidade em
círculo e
multirreferencial, assim como a troca da rigidez da lógica clássica
por
uma dialógica capaz de
conceber noções ao mesmo tempo complementares e
antagônicas; que
o conhecimento da integração das partes num todo
seja
completada pelo
reconhecimento da integração do todo no interior das partes.
A reforma do pensamento
permitirá frear a regressão democrática que suscita,
em todos os
campos da política, a expansão da autoridade dos
experts,
especialistas de todos
os tipos, estreitando progressivamente a competência dos
cidadãos,
condenados à aceitação ignorante das decisões
dos pretensos
conhecedores, mas de
fato praticantes de uma inteligência cega, posto que par-
celar e abstrata,
evitando a global idade e a contextualização dos problemas. O
desenvolvimento
de uma democracia cognitiva só é possível
numa
reorganização do
saber, a qual reclama uma reforma do pensamento capaz de
permitir não
somente a separação para conhecer,mas a ligação do
que está
separado.
Trata-se de uma
reforma muito mais profunda e ampla do que a de
uma
democratização
do ensino universitário e da generalização da
condição de
estudante. Trata-se de
uma reforma não programática, mas paradigmática, que
diz respeito à nossa
atitude em relação à organização do conhecimento.
Toda reforma
desse tipo suscita um paradoxo: não se pode
reformar a
instituição (as
estruturas universitárias) sem a reforma anterior das mentes; mas
não é possível
reformar as mentes sem antes reformar a instituição. .
Eis uma
impossibilidade lógica, mas é justamente desse tipo de
impossibilidade
lógica que a vida
zomba. Quem educará os educadores? É necessário que eles
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se auto-eduquem, e se
eduquem prestando atenção às gritantes necessidades
do século, as quais
são encarnadas também pelos estudantes.
Certo, a reforma se
anunciará a partir de iniciativas marginais, freqüentemente
aberrantes; mas
caberá à própria universidade realizar a reforma. No
seu
relatório anual de
1986, o reitor de Harvard declarou: "Nem o
jogo da
concorrência, nem
os esforços deliberados dos reformadores externos foram
capazes de garantir um
constante nível elevado de atividades. É a Universidade
que deve encarregar-se
dessa tarefa vital".
Sim, precisa-se de
idéias externas, críticas e contestações de fora,
mas é
fundamental, sobretudo,
a reflexão interna. A reforma virá do interior, através do
retomo às fontes
do pensamento europeu moderno: a problematização. Hoje,
não basta
problematizar o homem, deve-se problematizar a ciência, a técnica -
o
que acreditávamos
ser a razão e era, com freqüência. uma
abstrata
racionalização.
Uma psicologia
cognitiva elementar nos lembra algumas evidências que
não
deveríamos nunca
esquecer:
1.
O cérebro humano é, como o dizia H. Simon, um
a.s.p.,
General
Setting Problems e também General Solving Problems. Mais
potente é
a sua atitude geral, e maior será a sua atitude para tratar de
problemas
particulares.
2.
O conhecimento progride, principalmente, não por
so-
fisticação
na formalização e na abstração, mas através da capacidade
em
contexlualizar e em globalizar. Essa capacidade necessita de uma
cultura
geral e diversificada, e, estimulada essa cultura, o
pleno
emprego da
inteligência geral, isto é, o espírito vivo.
Eis a
perspectiva para o novo milênio. A universidade deve ultrapassar-
se para se
reencontrar.
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