Sobrre o Relativismo Cultural



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Alambre. Comunicación, información, cultura. Nº 2, marzo de 2009.

Sobre o Relativismo Cultural
Por Renato Ortiz


Existe atualmente um mal estar do universalismo. A revolução digital, os meios de comunicação, as finanças, as viagens, o imaginário coletivo do consumo, nos levam a sublinhar os traços compartilhados desses tempos de globalização. A própria noção de espaço se transformou, os símbolos e signos culturais adquirem uma feição desterritorializada, descoladas de suas cores nacionais ou regionais, redefinindo-se no âmbito da modernidade-mundo. Entretanto, diante deste movimento real das sociedades uma desconfiança se insinua. O mal estar é uma sensação imperceptível de desconforto. Ele é palpável mas disperso, sua manifestação é sinuosa, difícil de ser identificada. Porém, malgrado sua imprecisão, ele é evidente, tangível. A situação de globalização implica a necessidade de se buscar por respostas consensuais em relação aos problemas comuns, mas nossas certezas em relação às crenças anteriores se esvaneceram. O universalismo dos filósofos iluministas já não nos serve de guia. As guerras, a dominação tecnológica, os desmandos da colonização, o eurocentrismo, a divisão das sociedades em civilizadas e bárbaras, o racismo, são fatos inegáveis. Para contorná-los, de nada adianta um certo malabarismo intelectual que busca compreendê-los como "desvios" de uma modernidade incompleta. Paradoxalmente, no momento em que uma determinada situação histórica aproxima a todos, o universal, como categoria política e filosófica, perde em densidade e em convencimento. Ressurge, assim, um debate antigo, mas que agora reveste-se de formas distintas: o relativismo. Ele associa-se às reivindicações identitárias, ao multiculturalismo, valorizando a diversidade cultural como traço essencial da humanidade. Estaríamos vivendo uma mudança do humor dos tempos. As qualidades positivas, antes, associadas ao universal, se deslocam para o "pluralismo" da diversidade. Talvez o exemplo mais emblemático disso seja a redefinição do mito de Babel. Na tradição da Europa ocidental ele é uma mancha, uma regressão. Para superar a incomunicabilidade das falas, os homens deveriam buscar uma língua universal capaz de fundar a harmonia entre os povos e os indivíduos. Babel significava simplesmente a confusão dos interesses, o domínio irracional das paixões particulares. Quando dizemos hoje que a Internet é uma Babel, estamos no pólo oposto. O diverso torna-se um ideal e o uno uma "maldição". No entanto, é nesta brecha que o mal estar se introduz. A diversidade é sinal de riqueza, patrimônio a ser preservado, mas simultaneamente fonte potencial de conflito diante de um destino comum. O dilema é que ambas as categorias, o universal e a diferença, encontram-se comprometidas, modeladas pelo contexto que as redefinem e as limitam(1).

Minha intenção neste texto é trabalhar alguns aspectos deste mal estar. Deixarei de lado a problemática do universal (não partilho as ilusões eurocêntricas), mas para não me perder na polissemia do "relativismo" (ele possui inúmeras conotações), gostaria de delimitar minha incursão a um objeto específico: a Antropologia Cultural norte-americana. O motivo da escolha é simples, esta escola de pensamento trabalhou de maneira sistemática o tema da diversidade cultural. Isso muito antes das abordagens que nos são agora familiares, globalização, pós-modernidade, direitos culturais. Circunscrita ao meio acadêmico, mais propriamente antropológico, ela pode ser revisitada, não tanto para se entender a história de uma disciplina, mas como um corpus textual que revela um conjunto de argumentos matrizes, cujas implicações reverberam em diferentes áreas de conhecimento e sob múltiplos matizes. Não é difícil perceber que muitos dos termos da discussão atual, implicitamente se referem à uma perspectiva que em outro contexto, marcou o debate intelectual. Recuperar alguns desses argumentos (não todos), compreendê-los, seria uma maneira de esclarecer, pelo menos parcialmente, questões do presente. Utilizo, portanto, um artifício analítico, na esperança que tal arqueologia das idéias possa ser útil para o diagnóstico de nossos tempos. São vários os escritos sobre a escola culturalista, contemplando os conceitos, as polêmicas entre seus participantes, os estudos etnográficos e lingüísticos, as condições sociais nas quais ela se desenvolveu nos Estados Unidos (luta contra o racismo, os ideais do liberalismo, a eclosão da Segunda Guerra mundial)(2). Não é meu intuito considerar as múltiplas facetas que a caracterizam, tampouco retraçar de maneira exaustiva os meandros de sua tradição intelectual, ela abarca domínios abrangentes e significativos, da Lingüística à Psicanálise. Minha leitura é retrospectiva e interessada, privilegia uma de suas vertentes: as diferenças. Este é o fio condutor.

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O culturalismo representa a consolidação da Antropologia nos Estados Unidos. Neste sentido, ele implica algumas rupturas em relação ao passado: novas formas de compreensão do trabalho antropológico, em particular a observação etnológica, assim como a invenção de categorias adequadas para a sua realização. Boas, o herói fundador, tem um papel de destaque no processo de sua institucionalização acadêmica, assim como na formação de uma brilhante geração de profissionais (Kroeber, Sapir, Lowie, Margaret Mead, Ruth Benedict, etc.). A ruptura é sugestiva por que revela um momento no qual se forja a identidade de uma disciplina, e desde o início a temática da diversidade cultural encontra-se presente. É através dela que um grupo de profissionais se identifica e se distingue de seus antepassados. Um ponto de tensão refere-se ao evolucionismo da geração anterior, nele repousava o quadro teórico dos escritos antropológicos do final do século XIX. As criticas visam justamente este tipo de postura e têm a intenção, como fez Durkheim ao fundar a Sociologia, de separar a Antropologia de seu passado hesitante e eclético, tornando-a um conhecimento científico e sui-generis. Para isso, era necessário uma revisão conceitual, uma releitura do legado disponível, ela contempla, pelo menos, três níveis: idéias, métodos, valores. No plano das idéias há um rechaço frontal à perspectiva que ordenava a história humana nos marcos de um único processo evolutivo. Ou seja, a possibilidade de estabelecer uma série explicativa abrangente e homogênea, na qual os fenômenos de uma fase posterior poderiam ser explicados por causas que lhe seriam "evolutivamente" anteriores. Isso implicava em se confrontar dois tipos correntes de interpretações. A primeira dizia respeito à Biologia. Cabe lembrar que para muitos pensadores do XIX havia uma relação causal, ou pelo menos, uma correspondência estreita, entre os imperativos biológicos e sociais. Esta era a tônica dos estudos raciológicos (o criminoso típico de Lombroso), das divagações racistas (Gobineau), além das combinações deterministas entre a raça e o meio, caras aos mitos da identidade nacional (na Europa e América Latina). Este arcabouço teórico tinha conseqüências no plano epistemológico: a submissão da esfera social a algo que a pré-determinava. Pois o determinismo biológico, mesmo quando suavizado, terminava por aprisionar a reflexão sobre a sociedade às malhas da natureza (Spencer considerava a Sociologia como o estudo da evolução nas suas formas mais complexas). A insistência de Boas em desvincular a cultura e a língua da raça ilustram bem o conflito entre duas gerações intelectuais; para ele, a relação causal entre essas dimensões não passaria de uma falácia(3). Argumentação que atravessa os seus escritos: "As evidências etnológicas demonstram que os traços hereditários raciais são irrelevantes quando comparados às condições culturais"; "a partir dos resultados relativos a uma massa de material acumulado nos últimos cinqüenta anos, é seguro afirmar que não existe nenhuma relação estreita entre tipos biológicos e formas de cultura"(4). Vamos encontrá-la nos textos da maioria dos antropólogos norte-americanos (a exceção é Leslie White, ex-aluno de Boas, grande promotor do pensamento evolucionista nos Estados Unidos). Cito apenas um exemplo, a distinção que Kroeber estabelece entre o orgânico e o super-orgânico. Seria um equívoco aplicar as leis da Biologia ao entendimento de níveis tão distintos. " Na fase atual da história do pensamento, uma das razões correntes para a confusão entre o orgânico e o social, é o predomínio da idéia de evolução. Esta idéia que atingiu a mente humana, uma das mais antigas, simplista e imprecisa, recebeu um forte impulso e fortalecimento no domínio do orgânico; em outras palavras, através da ciência biológica"(5). Retirar a compreensão antropológica da esfera biológica, significava: emancipar o domínio do social de sua tutela e debilitar as certezas evolucionistas.

Ainda no plano das idéias, outro aspecto refere-se às "leis universais" da evolução humana. A visão anterior pressupunha a existência de uma entidade abstrata, a Humanidade, que ao longo do tempo caminharia numa determinada direção. Seria possível captar o seu movimento unívoco e unidirecional. Como faz o quadro evolutivo de Morgan, no qual as fases de cada momento de maturação encontram-se bem delineadas: estado selvagem, barbárie, civilização. Cada uma dessas etapas, com exceção da última, se subdividia em três períodos: baixo, médio, alto. A epopéia humana podia ser então narrada através de uma seqüência de acontecimentos: a infância da raça humana, o aprendizado da pesca e o uso do fogo, a invenção do arco e da flecha, o advento da cerâmica, a domesticação dos animais, o cultivo do milho, a idade do ferro, a descoberta do alfabeto fonético. A proposta culturalista toma o rumo oposto. Nega-se a temporalidade unilinear da história, o que significa a impossibilidade de apreendê-la a partir de um ponto zero, marco inaugural de todo um processo. Isso fica claro na reflexão de Boas, Sapir e Whorf sobre os idiomas. A hipótese de uma língua-mãe, da qual eles teriam se originado, não passaria de uma especulação sem fundamento objetivo. Contrariamente à tradição européia (o correto seria dizer, uma certa tradição européia), estudiosa do ramo indo-europeu, eles se voltam para a fala dos povos indígenas nos Estados Unidos, e têm pouco apreço pela busca da língua universal e "perfeita" (diria, Umberto Eco). Se alguns autores postulavam a existência de um único, ou de poucos idiomas no início da história dos homens, eles sublinham a sua variedade (Boas pensa que o número de línguas, independentes entre si, era muito maior no passado). Como observa Whorf, demarcando-se de seus opositores: "Felizmente para a biologia, havia uma taxonomia sistemática que possibilitou a existência de um fundamento para as perspectivas históricas e evolucionistas. Na Lingüística, assim como nos outros estudos culturais, temos, infelizmente, a situação contrária. O conceito evolucionista a respeito da linguagem e do pensamento foi imposto ao homem moderno a partir do conhecimento de apenas alguns poucos tipos estudados, de um total de centenas de diversos tipos lingüísticos; isso encorajou um conjunto de preconceitos lingüísticos e alimentou uma grandiosidade insípida na qual apenas algumas línguas européias, nas quais o pensamento se baseia, representariam o ápice e o florescimento da evolução da linguagem"(6). Neste sentido, eles afastam-se das virtudes do mito adâmico, no qual Deus teria conferido uma língua comum à todos os homens. Suas simpatias estavam mais próximas de Babel, da confusão das falas. De maneira um tanto lapidar, um dos textos que compõem o livro Anthropology Today, cujo objetivo era inventariar o conhecimento antropológico da época, resume a posição de toda uma escola de pensamento: "As pesquisas realizadas o século XX acumularam uma massa de provas que demonstram, de maneira inequívoca, que as culturas particulares divergem significativamente uma das outras e não passam por fases de evolução unilinear"(7). Por isso os culturalistas privilegiam a idéia de difusionismo, a existência de núcleos de irradiação dos traços culturais(8). Eles derivariam de uma multiplicidade de pontos de partida, sendo em seguida, distribuídos no espaço. Este é um tema que irá repercutir, entre outros, nas análises de um autor como Herskovits, que se dedicou ao contato entre as civilizações, no qual podiam ser constatados os fenômenos de aculturação.

A critica ao evolucionismo continha também uma dimensão metodológica: a desconfiança em relação ao comparativismo. Esta é uma divergência explícita em relação à corrente britânica. O recurso comparativo é um dos traços característicos dos trabalhos produzidos na Inglaterra, ele figura, inclusive, na definição do que seria a Antropologia Social: "uma investigação da natureza da sociedade humana através da comparação sistemática dos diversos tipos de sociedades"(9). O adjetivo utilizado é sintomático, trata-se de uma disciplina que se percebe como "social", não como "cultural", cujo diálogo é permanente com a Sociologia (Malinowsky dizia ser ela uma "sociologia das tribos primitivas"). Seu objetivo era compreender as condições de existência dos diversos sistemas sociais, o que somente poderia ser atingido através do uso sistemático do método comparativo. Na verdade, esta era uma tradição enraizada nos precursores do pensamento antropológico, pois a comparação estava presente nos escritos de Frazer (Golden Bough) e Tylor (Primitive Mind). Ferramenta analítica crucial para um autor que tanto influenciou Engels na elaboração de sua "teoria" sobre o Estado, a família e a propriedade privada (Morgan). Este era, no entanto, o problema. A identidade da Antropologia norte-americana construía-se em contraposição a este passado incômodo e o alter ego britânico. Boas acreditava que tal metodologia estava inteiramente comprometida com premissas inadequadas e discriminatórias. Ela se encontraria intimamente vinculada à uma visão distorcida da história. O método vinha, a tal ponto impregnado de falsas concepções, que seria conveniente abandoná-lo, na melhor das hipóteses, utilizá-lo com reticência. Retomo um exemplo seu. Os antropólogos constatam a existência de vários desenhos geométricos, cujas formas se generalizam nas sociedades primitivas*. Questão: teriam elas uma origem comum ou obedeceriam algum tipo de "lei" universal? Sua resposta é clara: pelo contrário, apesar do resultado ser idêntico, elas podem provir de linhas de desenvolvimento distintas e de infinitos pontes de origem. A comparação, neste caso, seria equívoca, pois reforçaria uma evidência que restaria a comprovar: a origem comum. Diante do impasse, ele sugere uma outra estratégia, melhor e mais segura: "O estudo detalhado dos costumes praticados por uma tribo e sua relação com a cultural total"(10). Para se afastar das generalizações indevidas, recomenda-se a solidez do terreno etnológico. As vantagens da interpretação relativista sobre as outras residiria neste aspecto, evitar a arbitrariedade "universalista" cultivando o entendimento de cada cultura na sua particularidade, sua estrutura idiossincrática.

A controvérsia pode ser lida sob vários ângulos (por exemplo, a disputa entre Antropologia norte-americana e britânica), no entanto, o embate principal gira em torno da idéia de "generalização". Lida na ótica culturalista, o termo encerra indubitavelmente uma acepção negativa. Ela se funda, porém, numa compreensão bastante parcial das coisas, pois não existe uma vinculo necessário entre a utilização do método e a busca das origens humanas. O mesmo artifício é utilizado em diferentes disciplinas, Lingüística, Sociologia, História, e por distintas correntes teóricas, como os estudos de Dumézil sobre os indo-europeus ou o de Weber sobre a burocracia chinesa e moderna. Durkheim costumava dizer que o método comparativo era a essência da Sociologia, a única maneira de se escapar à mera descrição dos fatos. Levando-se o raciocínio às últimas conseqüências, pode-se dizer que sua interdição nos conduziria a um impasse: a incapacidade das Ciências Sociais em fazer qualquer tipo de generalização(11). Não é minha intenção entrar no debate metodológico, outros já o fizeram antes, quero sublinhar a dificuldade que possui toda uma tradição intelectual em tratar de questões "gerais", "comuns", "abrangentes", "universais". Esses termos são utilizados de maneira bastante vaga nos textos dos autores, mesmo quando se trata de assunto tão díspares como método, objetos ou valores. Níveis diferenciados, muitas vezes incompatíveis entre si, são assim reduzidos à um mesmo denominador; "generalizar" e "universalizar" funcionariam quase como sinônimos, embora encerrem significados consideravelmente diferentes. Ao privilegiar o singular, o risco é encerrá-lo em fronteiras tão seguras que o alicerce da disciplina que busca compreendê-lo encontra-se ameaçado. Os culturalistas ressentem as criticas que lhes são endereçadas, eles sabem que o conhecimento científico não pode se contentar apenas com o particular. Para resolver esta contradição eles avançam um argumento. "A cultura é universal na experiência humana, mas sua manifestação local ou regional é única (Herkovits); As culturas constituem diferentes respostas à essencialmente as mesmas perguntas colocadas pela biologia humana e pela generalidade da situação humana (Kroeber, Kluckhon)"(12). Mas em que constituiria este universalismo? Os autores enumeram uma lista quase infindável de suas qualidades: linguagem, artefatos materiais, família, práticas religiosas, proibição do incesto, satisfação de necessidades vitais (alimentação e sexo), cuidado com as crianças, etc. Todos os agrupamentos humanos utilizam procedimentos técnicos para assegurar sua subsistência, distribuem seus produtos através de um sistema econômico, estabelecem algum tipo de controle político, possuem mitos, ritos, artes gráficas. Ou seja, o universal é a vida em sociedade. Mas, como se trata de explicá-la, e ela somente se manifesta na sua diversidade, sua universalidade é meramente abstrata. As pesquisas empíricas nada acrescentariam ao seu conhecimento, o particular já é a prova de sua existência.

Por fim, o etnocentrismo. Os pensadores evolucionistas, sem sombra de dúvida, abusaram dos qualificativos "bárbaros", "selvagens", "incultos", para caracterizarem os povos primitivos. Os adjetivos infantis, imaturos, irresponsáveis, inconscientes, fazem parte do léxico que apreende a passagem da barbárie à civilização. Para resgatar o pensamento antropológico desta visão discriminatória, na qual existiam "superiores" e "inferiores", os ocidentais e os outros, era necessário uma re-significação dos conceitos. Uma verdadeira operação semântica deveria ser desenvolvida. A crítica ao etnocentrismo possui um aspecto metodológico. Como dizia Herskovits, "o etnocentrismo é o ponto de vista no qual o próprio modo de vida é preferido em relação a todos os outros"(13). Um exemplo: a definição de normal e anormal. Este é o caso dos fenômenos de possessão na África e vários lugares da América Latina. Para o acólito, o estado de possessão é a expressão suprema da experiência religiosa, quando os deuses "descem" do universo sagrado e se apossam da cabeça de seus filhos-de-santo. Para os psiquiatras e psicólogos, no entanto, este tipo de manifestação seria patológica, o transe revelaria um estado de histeria e loucura. Lowie, na sua critica ao biologismo e ao evolucionismo, dirá: "O procedimento científico moderno requer a contenção de qualquer implicação subjetiva; reconhecer que embora alguns objetos materiais ou esquemas racionais possam ser considerados "altos" ou "baixos" - melhore ou piores para certos propósitos - isso não se aplica à arte, à religião e à moral, para os quais não existe um padrão universal de reconhecimento Como indivíduo, o antropólogo reage às manifestações que lhes são estranhas de acordo com suas normas nacionais e individuais; como cientista, porém, ele meramente registra o canibalismo ou o infanticismo, compreende, e se possível explica tais costumes"(14). O etnólogo, ao se aproximar do outro, precisa despir-se de seus próprios valores. Ele descreve objetivamente os fatos e os comportamentos observados, evitando de compará-los à seu lugar de origem (o que, evidentemente, não é nunca problematizado). A rigor, esta é uma preocupação comum à qualquer tradição antropológica, seja ela britânica ou francesa. Como seu objeto é entender a alteridade, a diferença, tudo se resume a como traduzi-la. A escola norte-americana irá, entretanto, estabelecer uma amálgama, indevida, entre o relativismo cultural e a rejeição ao etnocentrismo. Ele funcionaria como uma espécie de abrigo aos preconceitos teóricos. Retomo uma citação de Herskovits: "O princípio do relativismo cultural decorre de um vasto conjunto de fatos, obtidos ao se aplicar nos estudos etnológicos as técnicas que nos permitiram penetrar no sistema de valores subjazcentes às diferentes sociedades. Este princípio se resume no seguinte: os julgamento têm por base a experiência, e cada indivíduo interpreta a experiência nos limites de sua própria enculturação"(15). A afirmação tem implicações mais amplas (retomarei este ponto adiante), mas num primeiro momento ela visa o etnocentrismo. A avaliação do Outro seria um obstáculo ao conhecimento, deveríamos nos abster de julgá-lo. O relativismo cultural se apresentaria, assim, como a postura ideal para se escapar à tentação etnocêntrica.

A atração da escola culturalista pela diversidade permeia os escritos de inúmeros de seus membros e os mais diferentes domínios, da socialização dos adolescentes em Samoa aos estudos lingüísticos. Por exemplo, Edward Sapir considera a língua não apenas como um instrumento de comunicação, nela estariam indexados os padrões culturais de cada sociedade. Ele diz: "O mundo nos quais vivem as sociedades são mundos distintos, não são apenas mundos com rótulos diferentes"(16). Ao nomear as coisas de determinada maneira, e não de outra, os idiomas configuram realidades distintas. A diversidade cultural se reforçaria, assim, no plano da linguagem. Benjamin Lee Whorf radicaliza sua perspectiva ao fundar o "relativismo lingüístico". Para ele, toda língua seria uma sistema-padrão, cada um diferente dos outros, nos quais as categorias do pensamento estariam ordenadas culturalmente. Quando falo em grego, penso em grego. Neste sentido, à variedade de culturas e de línguas, corresponderia uma variedade de modos de pensar. A tese do relativismo lingüístico é interessante mas, certamente, controversa, sua debilidade principal reside no fato de estabelecer um vínculo de necessidade entre língua e pensamento. Dito de outra maneira, as categorias do pensamento seriam determinadas pelo idioma. Surge, então, um paradoxo. Se cada universo lingüístico é uma monada, como é possível passar de uma língua para outra? Ou explicar o fenômeno da tradução, no qual se supõe a idéia de equivalência dos termos, negada pelo relativismo? Simplesmente aponto para esses impasses, e recordo ao leitor, tomei o exemplo da língua com o intuito de realçar a sensibilidade pelo diverso. Ela pode ser ainda ilustrada pela metáfora de Ruth Benededict do "arco das possibilidades culturais"(17). O número de sons que podem ser produzidos pelas cordas vocais e a cavidade nasal é grande (ela diz, ilimitado). No entanto, cada idioma deve selecionar apenas alguns deles. A dificuldade que temos em compreender as línguas que não nos são familiares deriva muitas vezes do fato de estarmos presos a determinada forma de seleção. Por exemplo, em inglês existe apenas um k, mas para vários povos existem cinco tipos de k, em diferentes posições da garganta ou da boca, implicando em distinções no vocabulário e na sintaxe. O mesmo ocorreria com a cultura. Ela pode ser pensada como um grande "arco de possibilidades" na qual os diferentes povos selecionariam algumas delas. Cada universo cultural seria um "ponto de vista".

Mas como esta diversidade é pensada? Há primeiro um pressuposto, a existência de uma unidade específica: "a" cultura. São inúmeros os exemplos sobre os costumes, as crenças, os mitos, os rituais mágicos, apresentados como evidências de sua materialidade. Herskovits em seu livro Man and His Works, inicia sua argumentação com um titulo sugestivo, "a realidade da cultura". Sua intenção é convencer o leitor, e novamente os exemplos cumprem esta função, de que não poderíamos escapar desta força que nos transcende, ela é concreta, real. Também em Kroeber, particularmente na sua definição do "super-orgânico", ela é apresentada como uma "coisa", algo objetivamente dado ("a substância da sociedade, a coisa que denominamos civilização, transcende os indivíduos e seu Ser se enraíza na vida"). Por isso, ela poderia ser apreendida pelo observador (afastadas as pré-noções). Uma vez aceito o postulado, dele deriva o corolário: a Teoria da Cultura (ilusão recuperada atualmente, por alguns autores dos Estudos Culturais). Se a cultura é uma realidade sui-generis, a ela corresponderia uma ciência capaz de compreendê-la, a Antropologia Cultural. Esta é a ambição nunca alcançada. A tradição britânica, neste aspecto, é bastante crítica em relação à escola norte-americana. Não apenas por que o conceito de cultura seja elíptico, difícil de ser definido. O texto clássico de Kroeber e Kuckhon faz uma revisão detalhada de sua utilização (eles encontram 164 definições diferentes), mas não deixa, no final, de formular uma concepção de razoável consenso entre os antropólogos(18). A questão é de outra natureza. Ao se atribuir à cultura uma dimensão globalizadora e única, ela é retirada da sociedade, passando ao largo das relações econômicas, técnicas e sociais. Por isso, Radcliffe-Brown afirma: "Não é possível existir uma ciência da cultura. É possível estudar a cultura apenas como uma característica de um sistema social"(19) . A reificação do domínio cultural termina por isolá-lo do processo histórico do qual ele se nutre.

A idéia da cultura como entidade singular, na sua forma "universal" presente em todas as sociedades humanas, se reproduz ao se considerar a pluralidade de sua manifestação. A ênfase também recai sobre a inteireza de cada unidade. O livro de Ruth Benedict Patterns of Culture é exemplar. Sua idéia é que a cultura constituiria um conjunto de padrões cuja realidade objetiva é interiorizada pelos indivíduos através da socialização. Cultura e personalidade seriam parte da mesma totalidade. Caberia ao antropólogo descrever as instituições, as técnicas, os rituais mágicos e religiosos, enfim, os costumes, articulando-os ao comportamento das pessoas. A análise repousa em dois níveis, objetivo e subjetivo. Por exemplo, o leitor conhece os Zuñi (uma etnia dos Pueblos no Novo México) através de um conjunto de informações etnográficas: são agricultores, possuem um "clero" que se ocupa das preces e dos cerimoniais religiosos, a caça e a guerra estão associadas às técnicas medicinais, a sociedade é matrilinear. No entanto, para captar sua diferencialidade, a autora acrescenta um elemento: os Zuñi são "apolíneos", cultivam a restrição do temperamento. Eles contrastam com os indígenas Dakota, de inclinação "dionísica". Entre os Dakota a relação do indivíduo com o sobrenatural passa pela busca pessoal das visões, algo que o martiriza e o transborda. Tudo é excessivo, os sonhos, as drogas ingeridas, as práticas de auto-mutilação, os jejuns para suscitar o estado de transe. O tipo de personalidade apolínea é calma, requer um comportamento vigilante em relação às emoções. Os Zuñi desconhecem as atitudes desregradas, a procura de experiências religiosas individuais é um tabu, pois os rituais encontram-se nas mãos de um clero especializado. Apesar de serem originários de uma região onde cresce uma planta alucinógena, o peyote, eles têm uma certa repugnância em utilizá-lo. Comportamento ascético que se estende ao consumo das bebidas alcoólicas. Da mesma maneira é possível contrapor os Dobu (ilhas da Melanésia) aos Kwakiutl (ilhas de Vancouver), os primeiros seriam "paranóicos", os outros, "megalomaníacos". Um Dobu, para ser um membro influente na sua sociedade, deve necessariamente possuir um temperamento desconfiado, alguém que suspeite dos outros. Aquele cujo impulso seria a confiança ou a amizade, estaria socialmente em desvantagem. A principal instituição entre os Kwakiutl é a rivalidade, em torno dela se constroem as relações sociais. Não se trata de uma disputa por objetos, acumulá-los como sinal de riqueza, o objetivo é simplesmente derrotar o rival, tudo perde o sentido diante da vitória. Ruth Benedict conclue: "[Essas culturas] não são meramente uma coleção heterogênea de atos e crenças. Cada uma delas possui determinados objetivos em relação aos quais são orientados os comportamentos e as instituições. Elas se diferenciam uma das outras, não apenas por que certos traços estão presentes aqui e não ali, ou por que outros traços são encontrados em outras regiões, e sob diferentes formas. Elas diferem, sobretudo, por que constituem um todo orientado em relação à diferentes direções"(20).

Alguns comentários são necessários. Primeiro, em relação à idéia de comparação: dionísico versus apolíneo, paranóico versus megalomaníaco (não entrarei no mérito dessas classificações, elas são abusivas para se compreender as relações sociais). Eu havia sublinhado anteriormente a desconfiança em relação ao recurso comparativo. Como entender essas contraposições? Para se apreender a especificidade de uma entidade é necessário contrastá-la à outras, não existe identidade sem alteridade. A rigor, nenhuma análise de um ponto discreto dispensaria um certo olhar comparativo. Entretanto, seu intuito não é a "generalização", captar o que haveria de comum entre eles; interessa sublinhar as especificidades. O "dionísico" possui uma qualidade própria irredutível ao tipo "apolíneo", e vice-versa. O contraste é a forma de se iluminar as diferenças. Outro aspecto refere-se à relação entre cultura e personalidade. Esta é uma característica da Antropologia norte-americana, que a partir dos anos 30 aproxima-se da Psicologia e da Psicanálise. Esta incursão no terreno da subjetividade é rica e promissora, estabelecendo uma ponte entre disciplinas estanques. Ela inaugura um diálogo profícuo com Freud e integra temas pouco usuais à reflexão antropológica, como os sentimentos de culpa e de vergonha. A escola norte-americana irá inspirar um conjunto de trabalhos criativos sobre a relação da vida mental e a esfera cultural, estimulando novas áreas de pesquisa, como a etno-psiquiatria. Não obstante, minha leitura interessada conduz a outra dimensão. A interpretação proposta contém uma psicologização do social (por isso, foi bastante criticada) que lhe permite diagnosticar as sociedades em termos de "caráter". A metáfora, cuja origem é claramente psicológica, retém o traço idiossincrático da personalidade. O caráter, algo essencialmente pessoal, desloca-se para qualificar o plano do coletivo. Cada indivíduo age de acordo com os padrões de sua cultura, e inversamente, cada cultura revela uma identidade "pessoal". Individualidade e singularidade cultural se complementam, elas partilham as mesmas virtudes, são unas e indivisíveis.

Essa conclusão não se restringe, porém, ao entendimento das sociedades primitivas, ela engloba as sociedades complexas. Isso se faz num contexto bastante controverso. Durante a Segunda Guerra Mundial o Office of War Information e o Office of Strategic Services (precursor da CIA), recruta diversos antropólogos (Mead, Bateson, Gorer, Kluckhon, Benedic) para elaborarem diagnósticos da mentalidade dos inimigos: japoneses e alemães. Não se trata de uma atividade meramente "imperialista" (muitos críticos, a vêem assim), é preciso contextualizar as coisas, os tempos são de guerra e muitos deles possuem um engajamento anti-fascista. Mas não se pode eludir o fato de que os trabalhos produzidos vem marcados pelo signo da política, o reverso dos ideais, até então, preconizados. Surgem, assim, os estudos do "caráter nacional" nos quais a ideologia liberal norte-americana é uma marca indelével. No pós-guerra, eles se desdobram, contemplam outros paises (os russos, os novos inimigos, assim como os romenos e franceses) e ganham inclusive um rótulo acadêmico: Antropologia à distância. Ironicamente, a tentação etnocêntrica, que tinha sido, em parte, evitada no passado, ressurge, alimentada e mesclada às disputas ideológicas. The Crysanthemun and the Sword, na sua versão original um panfleto para ser distribuído entre os soldados americanos, é inteiramente construído a partir da dicotomia americano/japonês. Ela nada tem de neutra, nos lembra as categorias de classificação estudadas por Durkheim e Mauss, nas quais um dos pólos é virtuoso e justo, o outro a sua imagem invertida. Assim, nos trabalhos de Geoffrey Gorer, os japoneses são descritos como "infantis", "complexados", "agressivos". Desde a infância eles seriam submetidos a uma educação dualista, ser subserviente ao patriarca da família e aos irmãos mais velhos, mas agressivos com a mãe e as irmãs. O universo masculino exigia obediência e passividade, em contrapartida, o feminino era o espaço das gratificações (comida, bebida, carinho, sexo), ele podia ser submetido ao controle e agressão para se obter tais premiações(21). Qualidades estranhas ao "caráter nacional" norte americano, no qual se valoriza a "igualdade", a "máquina", o "sucesso financeiro". Esses escritos, como os que os antecederam, os pensadores europeus do século XIX, tem muito de senso comum. Eles contrapõem as "essências" nacionais reforçando os estereótipos que se tem dos outros. Um exemplo banal: "os americanos adaptam sua maneira de viver aos desafios lançados permanentemente pelo mundo; os japoneses se reconfortam num modo de vida planificado e codificado" (Ruth Benedecit). Os estudos sobre o Japão são eivado de observações deste tipo, e fundamentam-se numa visão da história inteiramente equívoca. O "caráter japonês" (submissão à autoridade familiar, culto ao imperador, sentimento de vergonha) seria, antes de mais nada, a-temporal, atravessaria incólume o caminhar do tempo. Ele resistiria, inclusive, às grandes mudanças, como a revolução Meiji e o processo de modernização. (a autora insiste, Meiji é uma restauração, não uma revolução). Um dos aspectos contemplados pela sua análise é o vínculo entre o imperador e a nação ("um Japão sem o imperador não seria o Japão"). Esta lealdade do povo a seu suserano tem um interesse antropológico, seria mítica e imemorial, e político, pois nas propostas apresentadas ao governo americano, no intuito de vencer a guerra, recomenda-se cautela no tratamento do imperador(22). Entretanto, essas observações "à distância" nada têm de originais, elas simplesmente reproduzem a ideologia nativista (kokugaku). Cunhada por um grupo de intelectuais da Escola do Aprendizado Nacional no final do século XVII, nada tem de milenar, ela se impõe ao longo do XIX com as disputas sobre os "tratados desiguais" (exigências do colonialismo inglês e da expansão americana no Pacífico). Durante o período Tokugawa (1600-1868), a noção de povo inexiste (o Japão era uma sociedade de castas) e o imperador é uma figura política secundária (o país é governado por uma junta de senhores de guerra, o bakufu). Com a revolução Meiji, a transformação do xintoísmo em religião oficial (face à predominância anterior do budismo e do confucionismo), o fim do regime de castas, os imperativos da modernização, consagra-se o mito do imperador como essência da unidade nacional. Meiji "inventa" uma tradição, na qual o passado é convenientemente interpretado à luz das contradições do presente(23).

Deixo de lado esses aspectos para retomar o fio de minha argumentação. A análise das sociedades complexas requer um ajuste dos métodos de pesquisa empregados anteriormente. Como observa Margaret Mead: "Considerando nossa experiência em extrair informações de nossos informantes, e nossa habilidade em compreender a inter-relação entre todos os aspectos do comportamento cultural, começamos a explorar os aspectos do comportamento nacional que poderíamos considerar como relevantes, pois eles estavam relacionados às instituições nacionais...Nossa pesquisa envolvia entrevistas com os membros da cultura em que estávamos interessados, entrevistas com pessoas de outras culturas, e que tinham vividos anos no país em estudo, um exame intensivo da cultura material, particularmente filmes, romances, autobiografias, diários, que em princípio poderiam substituir o tipo de observação da vida com que estávamos acostumados. Utilizamos, assim, nosso treinamento no trabalho de campo, para nos ajudar a identificar os comportamentos que eram característico de toda uma nação"(24). Não haveria, pois, nenhuma incompatibilidade em se transpor determinadas técnicas e concepções para um terreno inteiramente diverso (o que é, em parte, verdadeiro). Sublinho um aspecto da citação: a inter-relação de todos os aspectos da cultura. O antropólogo, tendo antes testado seus conhecimentos em outras áreas, seria capaz de interpretar uma série de informações díspares, mas sistemáticas, dentro de um mesmo quadro holístico. Isso por que o comportamento das pessoas traduziria a realidade das instituições que as transcendem. "Todos os cidadãos do moderno Estado-nação estão expostos aos padrões institucionais cuja regularidade engloba a comunidade nacional como um todo"(25). Caberia compreender esses padrões. Postula-se, portanto, uma homologia entre a totalidade das sociedades primitivas e a totalidade das sociedades complexas. Geoffrey Gorer abre seu livro The American People com uma frase sugestiva: "Tento aplicar neste livro, à uma grande comunidade moderna, alguns métodos e conhecimentos da antropologia cultural"(26). Para um sociólogo como Tönnies a afirmação é, no mínimo, surpreendente, o que ele denomina de "sociedade" é pensado enquanto "comunidade". Esta é, no entanto, a dimensão a ser valorizada. Margaret Mead acredita que nos Estados Unidos, os estudos de comunidade, empreendidos pela escola de Chicago, seriam os antecessores legítimos das pesquisas sobre o caráter nacional. A nação seria uma espécie de comunidade ampliada. Mead, desta forma, pode estudar o caráter francês através de uma análise da família francesa (pouco importa se a sua amostragem se concentre nos setores burgueses). Tudo se passa como se as relações familiares fossem imunes ao meio no qual elas se situam, independentemente das classes sociais, da oposição entre a cidade e o campo, dos processos migratórios. Do ponto de vista analítico, as fraturas existentes nas sociedades industriais seriam irrelevantes diante da integração cultural. O caráter, unidade psicológica e social, desvendaria o que há de "íntimo" a todos. Estaríamos, assim, diante de uma miríade de características únicas, o mundo sendo composto por nações com personalidades distintas.

O relativismo cultural considera a cultura na sua própria estrutura, sua metodologia é idiográfica, privilegia os fatos individuais, e não monotética, a busca de generalizações (evito a palavra universal). Tal concepção teórica projeta-se num outro domínio, o dos valores(27). É difícil encontrar uma definição satisfatória do que eles seriam, uma polissemia de sentidos envolve suas múltiplas expressões: obrigação moral, sentido de uma ação, sentimentos, concepções de mundo, ethos, motivação, fins. Em todas essas acepções pressupõem-se a existência de certas preferências, uma gradação hierárquica de coisas e ações, algumas seriam mais apropriadas ou desejáveis do que outras. Os valores encerram uma dimensão cognitiva e emocional, ou como diz Kluckhon, são "idéias formulando prescrições para a ação"(28). De alguma maneira eles falam do comportamento das pessoas, e como o antropólogo observa as práticas sociais, é preciso compreendê-los. Seja no seu significado ou na forma como são socializados, pois para existirem, se inscreverem na conduta pessoal, eles devem ser interiorizados durante a infância, transformando-se numa organização sistemática da experiência. Os valores encontram-se, assim, enraizados nas sociedades que os produzem, eles são "fatos sociais". No entanto, como havia observado Herskovits, "os julgamentos de valor fundamentam-se nas experiências dos indivíduos", e sabemos, cada um deles retrata sua própria sociedade. Por exemplo, o sentimento de ultraje que um Kwakiutl ressente diante da morte de alguém de seu grupo, ele é único e intransferível. Isso significa que cada cultura, na sua unicidade, contém valores inteiramente distintos. Ou seja, formas de apreciação (de avaliar) dos objetos, do mundo, das pessoas e seus atos. Tal constatação implica, num primeiro momento, uma critica ao etnocentrismo (como vimos, antes), mas em seguida, ela se reveste de um significado mais abrangente. Se os valores são também idiossincráticos não é possível "pesá-los" segundo uma escala comparativa. Eles nada teriam de comum. É preciso evitar alguns mal entendidos. O relativismo moral não significa que os indivíduos possam "fazer o que quiserem" à revelia de qualquer tipo de norma social (Um dos personagens de Os Irmãos Karamazov dizia, "se Deus não existe tudo é permitido"). David Bidney nos lembra que "todo indivíduo deve se conformar às regras de sua sociedade". Afinal, sua personalidade funda-se nas relações sociais que o transcendem. O problema se coloca quando sociedades distintas entram em contato. E o autor acrescenta: "cada sociedade necessita tolerar os códigos das outras sociedades no interesse de uma mútua sobrevivência. A obediência e a conformidade são imperativos culturais desde que o código de comportamento seja socialmente aceito"(29). A passagem introduz um deslocamento sutil do argumento. Um elemento estranho nela se insinua: a tolerância. Seria ela um valor universal? Contradizendo as teses relativistas. Ou um deslize do pensamento liberal norte-americano? Projetanto os seus ideais no universo dos outros. O mesmo entendimento encontramos em Herskovits, quando ele caracteriza o relativismo cultural como "uma filosofia que, reconhecendo os valores erigidos por cada sociedade para guiar a sua própria vida, enfatiza a dignidade inerente de todo corpo de costume, e a necessidade de existir uma tolerância das convenções, embora elas possam diferir uma das outras"(31). Estamos distantes dos princípios metodológicos da observação participante. Os culturalistas tinham como ponto de partida o estudo das sociedades primitivas, mas sub-repticiamente somos induzidos à questões de outra natureza. A idéia de tolerância, de respeito mútuo (em si, um julgamento de valor), apaga as contradições inerentes à própria lógica que se quer confirmar (o respeito mútuo dificilmente explicaria a história das guerras, invasões, conflitos, escravidão, segregação social, regime de castas, imperialismo, etc). Mas a argumentação possui um objetivo implícito, não confessado, harmonizar a realidade empírica das culturas diversas e uma postura dita "filosófica". A Antropologia ensinaria a seus praticantes uma tolerância maior, por acaso, os mesmos ideais preconizados pela sociedade norte-americana.

Independentemente dessas contradições, importa sublinhar algumas conseqüências práticas deste tipo de perspectiva. Em 1947, um grupo de antropólogos, liderados por Herskovits, é convidado pela ONU para escrever o relatório preparatório à carta dos Direitos Humanos. O resultado é um anti-clímax. Seus autores se debatem entre a afirmação dos direitos universais e o horizonte relativista dos valores. O documento que eles redigem é curto, contém uma parte interpretativa e um conjunto de recomendações(31):

  1. "O indivíduo realiza sua personalidade através de sua cultura, portanto, o respeito pelas diferenças individuais implica o respeito pelas diferenças culturais".
  2. "O respeito pelas diferenças culturais encontra-se cientificamente validado pelo fato de não ter sido descoberta nenhuma técnica de avaliação qualitativa das culturas".
  3. "Os padrões e os valores são relativos às culturas dos quais eles derivam, assim, qualquer tentativa de se formular qualquer tipo de postulado que decorra de um código moral e de crenças de uma única cultura, deveria ser excluída da aplicabilidade de qualquer Declaração dos Direitos Humanos dirigida à humanidade como um todo"


O texto criou uma série de constrangimentos, pois tinha sido elaborado pela comissão executiva da Anthropological Association. Várias foram as críticas(32). Uma parte delas focalizava suas contradições internas. Por exemplo, dizer que "o respeito pelas diferenças individuais implica o respeito pelas diferenças culturais", é uma afirmação genérica, sem nenhum fundamento. O contrário seria provavelmente mais plausível. Por outro lado, considerar a ausência de uma técnica de avaliação das culturas como prova do respeito às diferenças culturais, é associar dois tipos de julgamentos sem nenhuma relação de necessidade entre eles. Restam, ainda, algumas observações de caráter mais substantivo. Primeiro, a ilusão que um grupo de profissionais nutre ao arbitrar temas que fugiam à sua "jurisdição". A autoridade científica dificilmente seria legítima no campo dos valores (Durkheim dizia, "a ciência é uma moral sem ética"). Segundo, qual o grau tolerável das diferenças. Seria justo aplicá-la ao nazismo? Como justificar o engajamento de vários antropólogos durante a Segunda Guerra, diante dos princípios recomendados. O relatório continha, ainda, na sua parte argumentativa, algumas passagens controversas: "o homem é livre somente numa sociedade na qual existe uma definição da liberdade". O que fazer diante das condições nas quais o conceito de liberdade inexiste? Muitas dessas questões serão retomadas posteriormente na discussão sobre os direitos humanos(33). Mas gostaria de sublinhar uma aspecto deste incidente: a coerência do texto apresentado. Ele leva às últimas conseqüências a lógica prescrita por um determinado tipo de pensamento. Neste sentido, ele é previsível, nada possui de surpreendente. Suspender o julgamento, seria a maneira ideal de fugir à uma visão desfigurada dos outros.


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O relativismo cultural possui um mérito, ele inocula no pensamento uma sensibilidade pelo diverso. Isso não é pouco. A tradição das Ciências Sociais é fruto do Iluminismo e do industrialismo da modernidade. Seu universalismo é sempre interessado. Convenientemente, não se objetiva nunca o lugar a partir do qual o discurso se enuncia. Esta omissão intencional atribui ao Outro o pecado do provincianismo. Encerrado nas suas fronteiras ele seria incapaz de transcender os seus próprios limites. Sei que a Antropologia anterior à década de 50, quando o processo de descolonização da África e parte da Ásia não tinha ainda se completado, encerrava uma boa dose de etnocentrismo. O Outro era silencioso, somente podia se exprimir através da fala de alguém que lhe era estranho. O antropólogo possuía o monopólio da interpretação das sociedades ágrafas. Mesmo assim, os textos da escola culturalista contém um esforço notável de descentramento. É como se eles nos dissessem, há muitas coisas para se compreender no mundo e a curiosidade intelectual não deve se conformar ao espaço de uma única província (Europa ou Estados Unidos). Neste sentido, os antropólogos têm algo de distinto em relação a seus antecessores. Pode-se ler Montaigne, e sua crítica ao canibalismo, como uma metáfora ao barbarismo da civilização dita ocidental; ou Montesquieu, em suas Cartas Persas, como um olhar distante e irônico em relação aos europeus. Também os românticos "falavam" do outro, embora no fundo estivessem interessados em si mesmos. Ao tomar o "primitivo" (agora, utilizo propositalmente as aspas) como objeto de estudo, a Antropologia nomeia um campo específico, com uma identidade própria. Em tese, importa captar a especificidade dessas sociedades (e não do mundo europeu) apartadas da modernidade. A sensibilidade pelo diverso funciona, assim, como um mecanismo intelectual poderoso.

Contudo, a perspectiva relativista tem muito de ilusão de ótica. Os objetos que ela enxerga são verdadeiros mas suas configurações, espelhadas na retina, estão distorcidas. Na verdade, ao se pensar a diversidade cultural na sua unicidade, termina-se por apreendê-la como uma essência dotada de uma materialidade insuspeita. Por isso a metáfora do caráter torna-se plausível. Haveria uma correspondência, nunca comprovada, entre a identidade pessoal e a personalidade de uma cultura. A ilusão está em se pensar cada entidade como um mundo em miniatura, idiossincrasia inteiramente independente do contexto no qual ela se enraiza. As sociedades não existem apenas em si, mas sempre em situação. Ainda nos anos 50, Georges Balandier chamava a atenção para este aspecto(34). Por exemplo, o culturalismo norte-americano definia a aculturação como uma mudança decorrente do contacto de "dois ou mais sistemas culturais autônomos"(35). O raciocínio pressupunha a independência das entidades culturais, cada uma delas sendo inteiramente diversa e separada da outra. Bastaria analisar sua interação para entender o resultado dos fenômenos nascidos de sua aproximação. Balandier, ao estudar o messianismo na África, ponderava que o contacto entre as civilizações dificilmente seria inteligível sem situá-las no contexto colonial. De nada adiantaria contrapor traços das religiões tradicionais ao catolicismo ou ao protestantismo, sem levar em consideração as relações sociais reordenadas pela colonização. A rigor, a autonomia postulada é enganosa.

O livro de Franz Boas, The Mind of Primitive Man, abria com uma imagem cartográfica do globo terrestre: uma diversidade de povos, culturas, idiomas e costumes distintos. Ao lado dos europeus e de seus descendentes, contrastam os chineses, os nativos da Nova Zelândia, os negros africanos, os indígenas americanos, cada lugar com o seu modo de vida peculiar. A paisagem é a fotografia de uma época, o planeta seria um conjunto de nódulos distintos, países, civilizações, grupos diversos. O "nós" europeu ocuparia apenas uma faixa de sua extensão, restariam muitas outras, afastadas de sua maneira de ser. A imagem proposta descreve o planeta como um emaranhado de pontos discretos, cada um deles constituiria uma identidade específica. A câmera antropológica captava a territorialidade desses espaços descontínuos. Muitas vezes esta perspectiva (no sentido arquitetônico do termo) se projeta sobre o mundo atual. Novamente, ela prescinde da idéia de situação, cada cultura desfrutaria de uma inteireza absoluta. Basta, porém, imergi-la nas contradições reais da história para percebermos que o particular é sempre tensionado pelo contexto no qual se insere. A situação de globalização redefine as partes, desde as mais "tribais" às nações mais industrializadas. Neste sentido, não há como escapar à sua dimensão comum. E não se trata de uma escolha ou de uma visão etnocêntrica do mundo, o processo é mundial, penetra e atravessa as diferenças sociais e culturais à despeito de suas especificidades. As questões "comuns", "gerais", não decorrem necessariamente de uma filosofia universalista, elas existem por que as diferentes sociedades estão situadas numa teia de relação de forças (são subalternas ou dominantes) que as transcendem e as determinam (os direitos humanos não são universais, mas pertencem ao destino comum no âmbito da modernidade-mundo).

Retiro um exemplo da própria literatura antropológica: os Baruya, estudados por Maurice Godelier(36). Este grupo de nativos da Nova Guiné, em parte controlada pela Austrália, no passado também pela Holanda, hoje pela Indonésia, foram "descobertos" por um jovem oficial australiano em 1951. Em 1960, uma segunda expedição militar retornou, estabelecendo um posto oficial para a "pacificação" da população. O primeiro antropólogo (Godelier) desembarca na região em 1967, momento em que chegam os funcionários do estado colonial e os missionários. Em 1975, à sua revelia e sem saber muito bem porque, seus habitantes foram integrados à um novo estado independente, Papua-Nova-Guiné, que se transformou num membro das Nações Unidas. A história dos Baruya é recente, não data dos tempos imemoriais, inicia-se em meados do século XVIII. Eles são descendentes da tribo Yoyué que vivia a poucos dias de marcha do lugar que ocupam atualmente nas montanhas. Conta-se que um dia os homens e as mulheres de uma aldeia partiram para a floresta numa grande expedição de caça, os inimigos dos Yoyué invadiram suas casas, saquearam tudo e massacraram os seus habitantes. Os poucos que escaparam, homens e mulheres, penetraram na floresta e buscaram refúgio nas altas montanhas, onde vivia uma outra tribo, os Andjé. Aí, um dos clãs locais, os Ndélié, lhes ofereceram suas terras, casaram-se entre si, e após duas ou três gerações, juntos, mataram uma parte dos Andjé, os outros fugiram para o outro lado da montanha. A partir de então formou-se um novo grupo social, com um território, ritos e uma história mítica particular. Pergunta: seria possível descrever o "caráter" cultural dos Baruya sem situá-los nesta história de disputas, exílios, e refundações?

As sociedades são relacionais, nunca relativas. Seus territórios são invadidos pelos grupos inimigos e as trocas de mercadorias, objetos e mulheres, são constantes. Elas possuem, inevitavelmente, uma concepção do Outro. Não basta definir-se a si próprio, na verdade, isso se faz em contraposição aos que se encontram fora de um determinado círculo simbólico. Sabemos que o termo "bárbaro" provém da Grécia antiga, ele servia para distinguir entre um "nós" grego e "os outros", os estrangeiros. Ao reconhecer o pertencimento à um determinado grupo, o idioma era uma fronteira decisiva, os "bárbaros" eram aqueles que não o entendiam. Na Europa ocidental a representação do Outro passava pelo contraste com a idéia "civilização", civilidade dos modos, e com a revolução industrial, as conquistas técnicas. Cabia aos não europeus o fardo da selvageria ou a incompletude das culturas orientais (o capitalismo não podia nascer no Oriente, dizia Weber). Porém, este não é um traço específico de uma única sociedade (muitos diriam, da dominação ocidental). Os velhos mapas chineses do século XVII dividiam o mundo em círculos concêntricos. No centro encontrava-se o império celestial, na sua vizinhança, as zonas sob sua influência, Japão, Coréia, Vietnã, distante, viviam os estrangeiros, os ocidentais. Os asiáticos eram limpos (tomavam banho regularmente) e comiam com pauzinhos, os outros eram sujos e comiam com as mãos. No final do século XVIII os ingleses enviam uma embaixada à China para "abrir os portos" ao "livre comércio". Após a Revolução Industrial muitos fabricantes queriam impor a comercialização de seus produtos em escala internacional. Porém, a China imperial era um mundo a parte, no qual o tempo celestial regia a vida dos homens e do imperador. Pequim era o centro de um universo quadrado, cujos cantos, habitados pelos estrangeiros, não eram cobertos pelo céu. Os presentes trazidos pelos ingleses, uma forma de seduzir o poder local, não surtiram o efeito desejado, abrir as negociações, eles foram percebidos como uma oferenda ao imperador, sendo interpretados pelo código vigente, a vassalagem. Os exemplos podem ser multiplicados. Os lugbara na África possuem um complexo sistema de classificação do mundo. A aldeia, a família, o masculino, pertencem ao pólo da ordem, o feminino caracteriza os elementos da desordem. O espaço da floresta, por que foge ao controle dos homens, é exterior à aldeia, é considerado feminino; nele habitam os animais selvagens, os imprevistos, os perigos, e claro, os forasteiros. A representação nativa ordena os indivíduos e as coisas, e assimila o desconhecido à uma ameaça potencial.

A rigor, não faz sentido dizer que os membros de uma determinada sociedade possam suspender o julgamento sobre os outros. Caso isso ocorresse eles não poderiam pensá-los enquanto distintos de seu grupo de origem. Como dizia Sapir, a cultura encontra-se indexada na língua, para existir, o estrangeiro, vizinho ou inimigo, deve ser nomeado. O ato de enunciação lhe dá sustentação material e simbólica. O que significa, então, o debate em torno dos julgamentos morais? Quando se lê os textos de Antropologia Cultural, tem-se a impressão que eles projetam uma sombra na compreensão do Outro. Mas não é difícil perceber que existe uma distorção ótica dos parâmetros da discussão. Confunde-se os olhares (no plural) que os distintos grupos sociais têm uns dos outros, com o olhar (no singular) do antropólogo que os analisa. Tomo um exemplo, deliberadamente, controverso: a excisão e a infibulação. Como compreender essas práticas de mutilação corporal? Do ponto de vista da disciplina Antropologia faria pouco sentido pensá-las como um ato de barbárie ou o resquício de crenças "cruéis" e "incivilizadas". A circuncisão, masculina ou feminina, é comum a diversas sociedades (os judeus, por exemplo) e certamente possui um sentido social e simbólico em cada uma delas. Ela é vista como um embelezamento do corpo, associa-se às crenças e tradições religiosas, sendo considerada uma honra nos rituais de iniciação. O etnocentrismo, neste caso, atuaria como uma barreira epstemológica. Superá-lo é uma maneira (sempre incompleta) de avançar o conhecimento antropológico. No entanto, seria ilusório imaginar que o saber acadêmico pudesse fundar um discurso moral sobre a condenação ou valorização dessas práticas. Pelo simples fato do antropólogo não possuir o monopólio da interpretação do social. A controvérsia sobre a excisão e a infibulação envolve grupos e indivíduos marcados pelos mais diversos interesses: a mulher sudanesa que professa os costumes de sua sociedade; a jovem somaliana que gostaria de não de ser submetida aos rituais de seus pais; a repulsa das mulheres dos países vizinhos, nos quais inexistem tais práticas de mutilação; a sedução de outras mulheres africanas, que passam a adotá-las, considerando-as prestigiosas (algumas tribos, que tradicionalmente não as conheciam, passam a integrá-las aos seus costumes); as feministas "ocidentais" que fundaram um movimento contra a mutilação genital feminina (FGM: female genital mutilation); as africanas que vivem em cidades e as vêem como resquício do passado não moderno; as mulheres da África negra, atuantes nos organismos internacionais, que as consideram uma violação dos direitos humanos; os homens de paises africanos, que desejam a modernização da sociedade e as melhoras tecnológicas, mas não aceitam abrir mão do lugar que ocupam na cultura tradicional; a imigrante africana nos paises europeus que insiste em educar suas filhas nos padrões tradicionais, apesar da excisão ser considerada um crime no lugar onde habitam; a imigrante que decide não seguir mais suas tradições, poupando suas filhas do sofrimento que conheceu antes; a jovem filha de imigrante que tem relações sexuais antes do casamento e dirige-se a um médico para a reconstrução da vagina; o médico europeu que por razões éticas recusa-se a atendê-la; o outro médico que aceita fazer a reconstrução, pois sabe que ela será punida fisicamente pela família; a intelectual somaliana que denuncia as práticas que conheceu quando jovem, associando-as, equivocadamente, ao fundamentalismo islâmico; a acadêmica que retorna dos Estados Unidos à sua terra natal, e na busca de suas raízes, conhece tardiamente os rituais de iniciação; as mães imigrantes que hesitam entre praticar ou não tais atos, pois, sem a excisão, suas filhas poderiam ser segregadas quando retornassem ao lugares de origem, com a excisão, seriam discriminadas nos países europeus. A lista poderia ser prolongada, mas ela sugere uma conclusão clara: a polêmica envolve os mais diferentes atores, vivendo nos mais diversos contextos. O antropólogo, na melhor das hipóteses, tomará partido contra ou a favor, mas sua voz é uma entre tantas, e nada tem de mais autorizada do que as outras. A controvérsia independe dos princípios da observação etnológica, ela é inerente à situação no interior do qual essas práticas se exercem.

O relativismo cultural repousa num pressuposto, a inteireza absoluta da cultura. Não se trata tanto em postular o seu isolamento, afinal, por mais sólidas que sejam as fronteiras os grupos sociais interagem entre si. A rigor, a temática do contato é uma dimensão importante dos estudos culturalistas (difusionismo, sincretismo, aculturação). O problemático é a noção de inteireza, que permite associar a cultura às metáforas do caráter e da identidade. Neste sentido, ela seria um Ser que se conjuga no singular. O "pluralismo" da visão relativista é, na verdade, uma justaposição de singularidades. É também esta inteireza que nos ilude ao se considerar a cultura, não como uma dimensão da vida social, mas como a vida social na sua totalidade. Os antropólogos norte-americanos possuem uma perspectiva holística. Qualquer costume ou prática social somente se tornaria inteligível quando analisada dentro de um todo. Como este processo de constituição da humanidade (ou seja, do homem vivendo em sociedade) é, em grande medida, inconsciente, cultura e indivíduo formariam uma unidade indivisível. Nada existe fora da (singular) cultura. Mas como dizia a tradição antropológica inglesa, existiria tal entidade? Seria correto subsumir os diversos níveis sociais num mesmo denominador? Consideremos as frases: "toda cultura encerra uma identidade" e "toda sociedade encerra uma identidade". Ao substituirmos "cultura" por "sociedade" a argumentação se debilita. Dificilmente conseguiríamos associar, de maneira inequívoca e convincente, as relações sociais à um único tipo de identidade. Seria mais plausível dizer: "a sociedade encerra diversos tipos de identidades". Ao considerarmos a esfera cultural, o plural é mais adequado do que o singular (por isso, na situação de globalização, não existe uma cultura global ou uma identidade global). Cultura de massa, cultura popular, cultura de elite, cultura negra, cultura nacional, são qualificativos (corretos ou controversos) que, certamente, não esgotam a amplitude das relações existentes no âmbito das sociedades. Eles apenas nomeiam uma esfera distinta de outras, sejam elas econômicas, sociais, políticas, ou até mesmo, culturais. Por outro lado, a correspondência postulada entre a totalidade cultural e a identidade (ou caráter) é equívoca. Esquece-se que toda identidade é uma construção simbólica, neste sentido, ela não "é" um Ser, mas se "constrói como"; processo no qual estão envolvidos agentes em conflito e práticas sociais diversificadas. Ela é uma referência coletiva, mas também, algo em disputa, sobretudo no caso das identidades nacionais e étnicas. No fundo, o debate sobre o relativismo tem tendência a reificar as representações simbólicas (que são reais) enquanto uma entidade singular: "a" cultura. Ao retirá-la do processo histórico, torna-se possível contrastá-la ao universal ou a qualquer tipo de generalização, vista como indevida. Afinal, se a vida social se concentra no "íntimo" da identidade, o que lhe é externo torna-se algo episódico e inautêntico.




1 Remeto o leitor à um texto meu "Anotações sobre o universal e a diversidade", Revista Brasileira de Educação, vol.12, nº 34, 2007.
2 Ver Regna Darnell, And Along Came Boas: continuity and revolution in Americanist Anthropology, Amsterdam, John Benjamins Publishing Co, 1998; da mesma autora, Invisible Genealogies: a history of Americanist Anthropology, Lincoln, The University of Nebraska Press, 2001; Thomas C. Patterson, A Social History of Anthropology in the United States, Oxford, Berg, 2001.
3 Franz Boas. The Mind of Primitive Man (1911), New York, Free Press, 1939.
4 Boas, citações respectivamente p.13 e p.250, "Race and Progress" (1931) e "The Aims of Anthropology Research"(1932) in Race, Language and Culture, New York, The Free Press, 1940.
5 Kroeber, "The superorganic" (1917) in The Nature of Culture, Chicago, The University of Chicago Press, 1952, p.23.
6 Benjamin Lee Whorf, "Thinking in primitive communities" in Language, Thought and Reality, New York, John Wiley & Sons Inc., 1956, p.84. Consultar também a introdução de Boas in Handbook of American Indian Languages (1911), Oosterhout (The Netherlands), 1969.
7 Julian H. Steward, "Evolution and Progress" in A.L.Kroeber (ed.) Anthropology Today: an encyclopedic inventory, Chicago, The University of Chicago Press, 1953, p.324.
8 Boas, "Evolution or diffusion?" (1924) in Race, Language and Culture, op.cit.
9 A.R.Radcliffe-Brown, Method in Social Anthropology, Chicago, The University of Chicago Press, 1958, p.133.
* Uma ambigüidade latente rondava o vocabulário antropológico, principalmente em torno do termo "primitivo". Todos os autores eram reticentes quanto ao seu uso, porém, o empregavam correntemente até os anos 50. Como minha argumentação, nesta primeira parte do texto, encontra-se colada aos escritos da época, utilizarei o termo sem aspas.
10 F.Boas, "The limitations of the comparative method of Anthropology", (1896) in Race, Language and Culture op.cit., p. 274.
11 Passeron tem um belo texto no qual mostra que a Sociologia, contrariamente ao pensamento popperiano, não elabora explicações "universais"; no entanto, é fundamental que ela, através do recurso comparativo, consiga estabelecer uma série de "generalizações". Ver O Raciocínio Sociológico, Petrópolis, Vozes, 1995.
12 Herkovits, Melville. Man and His Works, New York, Alfred and Knopf, 1948, p.?; Kroeber, A.L.; Kluckhon, C. Culture: a critical review of concepts and definitions, Cambridge, The Museum, 1952, p.176.
13 Melville Herskovits, Man and His Works, op.cit. p.68.
14 Rober Lowie, The History of Ethnological Theory, New York, Holt, Rinehart and Winston, 1937, p.25
15 Herskovits, Man and His Works, op.cit., p.
16 E. Sapir "The status of linguistic as a science" in Culture Language and Personality, Berkeley, University of Califórnia Press, 1949, p.69.
17 Ruth Benedict, "The diversity of cultures" (cap. II) in Patterns of Culture (1934), Boston, Houghton Mifflin Co., 1963.
18 Kroeber e Kluckhon, Culture: a critical review of concepts and definitions, op.cit.
19 A.R.Radcliffe-Brown, A Natural Science of Society (1948), Chicago, The Free Press of Glencoe, 1964, p.106.
21 Geoffrey Gorer, "Japanese character: structure and propaganda" in The Study of Culture at a Distance, Chicago, The University of Chicago Press, 1949.
22 Gorer propõe às autoridades norte-americanas: "o Micado e o Trono não deveriam ser nunca atacados; na verdade, eles deveriam ser sempre mencionados de maneira respeitosa. Atacar o Micado, seria como atacar o Papa para os católicos medievais". Idem p.402.
23 Ver R.J.Smith, "The creation of tradition" in Tradition, Self and Social Order, Cambridge, Cambridge University Press, 1986.
24 Margaret Mead, "The importance of national cultures" in Arthur S.Joffman International Communication and the New Diplomacy, Bloomington, Indiana University Press, 1953, p.93
25 Margaret Mead, "National Character" in Anthropology Today, op.cit. p.648.
26 Geoffrey Gorer, The American People, New York, W.W.Norton & Co, 1948, p.9.
27 Consultar Kroeber, "Values as subject of natural science inquiry" in The Nature of Culture, op.cit.
28 Clyde Kluchon, "Values and value-orientation in the theory of action: an exploration in definition and classification" in T. Parsons e E.Shills (ed.) Towards a General Theory of Action, Cambridge, Harvard University Press, 1951, p.396.
29 David Bidney, "Cultural Relativism" in International Encyclopaedia of the Social Sciences, vol.3, London, Macmillan Co, 1968, p.545. Do mesmo autor, "The concept of value in modern Anthropology" in Anthropology Today, op.cit.
30 M. Herskovits, Man and His Works, op.cit., p.76.
31 Melville Herskovits, "Statement on Human Rights", American Anthropologist, vol.49, nº 4, 1947.
32 Ver Julian H. Stewart, "Comments on the statement of Human Rights" e H.G.Barnett, "On science and Human Rights" in American Anthropologist, vol.50, nº 2, 1948.
33 Consultar E. Downing; G. Kushner. Human Rights and Anthropology, Cambridge, Cultural Survival Inc., 1988.
34 Georges Balandier, Sociologie Actuelle de l'Afrique Noire, Paris, PUF; 1971.
35 Siegel, Vogt, Broom, Watson, "Acculturation: an exploratory formulation", American Anthropologist, vol.56, nº 6, 1954.
36 Maurice Godelier, Au Fondement des Sociétés Humaines, Paris, Albin Michel, 2007.


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Renato Ortiz se graduó en sociología en la Universidade de Paris VIII y se doctoró en sociología y antropología en la École des Hautes Études. Fue investigador del Latin American Institute de Columbia University y del Kellog Institute de Notre Dame. Actualmente, es Profesor titular del Departamento de Sociología de Unicamp. Ha publicado, entre otros, A conciencia fragmentada, Pierre Bourdieu, Cultura brasileira e identidade nacional, A moderna tradição brasileira. En español: Otro territorio; Mundialización y cultura; Los artífices de una cultura mundializada; Modernidad y espacio. Benjamin en París.
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ISSN 1851-7145
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