Existe atualmente um mal estar do universalismo. A
revolução digital, os meios de comunicação, as finanças, as viagens, o
imaginário coletivo do consumo, nos levam a sublinhar os traços compartilhados
desses tempos de globalização. A própria noção de espaço se transformou, os
símbolos e signos culturais adquirem uma feição desterritorializada, descoladas
de suas cores nacionais ou regionais, redefinindo-se no âmbito da
modernidade-mundo. Entretanto, diante deste movimento real das sociedades uma
desconfiança se insinua. O mal estar é uma sensação imperceptível de
desconforto. Ele é palpável mas disperso, sua manifestação é sinuosa, difícil de
ser identificada. Porém, malgrado sua imprecisão, ele é evidente, tangível. A
situação de globalização implica a necessidade de se buscar por respostas
consensuais em relação aos problemas comuns, mas nossas certezas em relação às
crenças anteriores se esvaneceram. O universalismo dos filósofos iluministas já
não nos serve de guia. As guerras, a dominação tecnológica, os desmandos da
colonização, o eurocentrismo, a divisão das sociedades em civilizadas e
bárbaras, o racismo, são fatos inegáveis. Para contorná-los, de nada adianta um
certo malabarismo intelectual que busca compreendê-los como "desvios" de uma
modernidade incompleta. Paradoxalmente, no momento em que uma determinada
situação histórica aproxima a todos, o universal, como categoria política e
filosófica, perde em densidade e em convencimento. Ressurge, assim, um debate
antigo, mas que agora reveste-se de formas distintas: o relativismo. Ele
associa-se às reivindicações identitárias, ao multiculturalismo, valorizando a
diversidade cultural como traço essencial da humanidade. Estaríamos vivendo uma
mudança do humor dos tempos. As qualidades positivas, antes, associadas ao
universal, se deslocam para o "pluralismo" da diversidade. Talvez o exemplo mais
emblemático disso seja a redefinição do mito de Babel. Na tradição da Europa
ocidental ele é uma mancha, uma regressão. Para superar a incomunicabilidade das
falas, os homens deveriam buscar uma língua universal capaz de fundar a harmonia
entre os povos e os indivíduos. Babel significava simplesmente a confusão dos
interesses, o domínio irracional das paixões particulares. Quando dizemos hoje
que a Internet é uma Babel, estamos no pólo oposto. O diverso torna-se um ideal
e o uno uma "maldição". No entanto, é nesta brecha que o mal estar se introduz.
A diversidade é sinal de riqueza, patrimônio a ser preservado, mas
simultaneamente fonte potencial de conflito diante de um destino comum. O dilema
é que ambas as categorias, o universal e a diferença, encontram-se
comprometidas, modeladas pelo contexto que as redefinem e as
limitam(1).
Minha intenção neste texto é trabalhar alguns aspectos deste
mal estar. Deixarei de lado a problemática do universal (não partilho as ilusões
eurocêntricas), mas para não me perder na polissemia do "relativismo" (ele
possui inúmeras conotações), gostaria de delimitar minha incursão a um objeto
específico: a Antropologia Cultural norte-americana. O motivo da escolha é
simples, esta escola de pensamento trabalhou de maneira sistemática o tema da
diversidade cultural. Isso muito antes das abordagens que nos são agora
familiares, globalização, pós-modernidade, direitos culturais. Circunscrita ao
meio acadêmico, mais propriamente antropológico, ela pode ser revisitada, não
tanto para se entender a história de uma disciplina, mas como um corpus textual
que revela um conjunto de argumentos matrizes, cujas implicações reverberam em
diferentes áreas de conhecimento e sob múltiplos matizes. Não é difícil perceber
que muitos dos termos da discussão atual, implicitamente se referem à uma
perspectiva que em outro contexto, marcou o debate intelectual. Recuperar alguns
desses argumentos (não todos), compreendê-los, seria uma maneira de esclarecer,
pelo menos parcialmente, questões do presente. Utilizo, portanto, um artifício
analítico, na esperança que tal arqueologia das idéias possa ser útil para o
diagnóstico de nossos tempos. São vários os escritos sobre a escola
culturalista, contemplando os conceitos, as polêmicas entre seus participantes,
os estudos etnográficos e lingüísticos, as condições sociais nas quais ela se
desenvolveu nos Estados Unidos (luta contra o racismo, os ideais do liberalismo,
a eclosão da Segunda Guerra mundial)(2). Não é meu intuito considerar as
múltiplas facetas que a caracterizam, tampouco retraçar de maneira exaustiva os
meandros de sua tradição intelectual, ela abarca domínios abrangentes e
significativos, da Lingüística à Psicanálise. Minha leitura é retrospectiva e
interessada, privilegia uma de suas vertentes: as diferenças. Este é o fio
condutor.
* * * * * *
O culturalismo representa a consolidação da
Antropologia nos Estados Unidos. Neste sentido, ele implica algumas rupturas em
relação ao passado: novas formas de compreensão do trabalho antropológico, em
particular a observação etnológica, assim como a invenção de categorias
adequadas para a sua realização. Boas, o herói fundador, tem um papel de
destaque no processo de sua institucionalização acadêmica, assim como na
formação de uma brilhante geração de profissionais (Kroeber, Sapir, Lowie,
Margaret Mead, Ruth Benedict, etc.). A ruptura é sugestiva por que revela um
momento no qual se forja a identidade de uma disciplina, e desde o início a
temática da diversidade cultural encontra-se presente. É através dela que um
grupo de profissionais se identifica e se distingue de seus antepassados. Um
ponto de tensão refere-se ao evolucionismo da geração anterior, nele repousava o
quadro teórico dos escritos antropológicos do final do século XIX. As criticas
visam justamente este tipo de postura e têm a intenção, como fez Durkheim ao
fundar a Sociologia, de separar a Antropologia de seu passado hesitante e
eclético, tornando-a um conhecimento científico e
sui-generis. Para isso,
era necessário uma revisão conceitual, uma releitura do legado disponível, ela
contempla, pelo menos, três níveis: idéias, métodos, valores. No plano das
idéias há um rechaço frontal à perspectiva que ordenava a história humana nos
marcos de um único processo evolutivo. Ou seja, a possibilidade de estabelecer
uma série explicativa abrangente e homogênea, na qual os fenômenos de uma fase
posterior poderiam ser explicados por causas que lhe seriam "evolutivamente"
anteriores. Isso implicava em se confrontar dois tipos correntes de
interpretações. A primeira dizia respeito à Biologia. Cabe lembrar que para
muitos pensadores do XIX havia uma relação causal, ou pelo menos, uma
correspondência estreita, entre os imperativos biológicos e sociais. Esta era a
tônica dos estudos raciológicos (o criminoso típico de Lombroso), das divagações
racistas (Gobineau), além das combinações deterministas entre a raça e o meio,
caras aos mitos da identidade nacional (na Europa e América Latina). Este
arcabouço teórico tinha conseqüências no plano epistemológico: a submissão da
esfera social a algo que a pré-determinava. Pois o determinismo biológico, mesmo
quando suavizado, terminava por aprisionar a reflexão sobre a sociedade às
malhas da natureza (Spencer considerava a Sociologia como o estudo da evolução
nas suas formas mais complexas). A insistência de Boas em desvincular a cultura
e a língua da raça ilustram bem o conflito entre duas gerações intelectuais;
para ele, a relação causal entre essas dimensões não passaria de uma falácia(3).
Argumentação que atravessa os seus escritos: "As evidências etnológicas
demonstram que os traços hereditários raciais são irrelevantes quando comparados
às condições culturais"; "a partir dos resultados relativos a uma massa de
material acumulado nos últimos cinqüenta anos, é seguro afirmar que não existe
nenhuma relação estreita entre tipos biológicos e formas de cultura"(4). Vamos
encontrá-la nos textos da maioria dos antropólogos norte-americanos (a exceção é
Leslie White, ex-aluno de Boas, grande promotor do pensamento evolucionista nos
Estados Unidos). Cito apenas um exemplo, a distinção que Kroeber estabelece
entre o orgânico e o super-orgânico. Seria um equívoco aplicar as leis da
Biologia ao entendimento de níveis tão distintos. " Na fase atual da história do
pensamento, uma das razões correntes para a confusão entre o orgânico e o
social, é o predomínio da idéia de evolução. Esta idéia que atingiu a mente
humana, uma das mais antigas, simplista e imprecisa, recebeu um forte impulso e
fortalecimento no domínio do orgânico; em outras palavras, através da ciência
biológica"(5). Retirar a compreensão antropológica da esfera biológica,
significava: emancipar o domínio do social de sua tutela e debilitar as certezas
evolucionistas.
Ainda no plano das idéias, outro aspecto refere-se às
"leis universais" da evolução humana. A visão anterior pressupunha a existência
de uma entidade abstrata, a Humanidade, que ao longo do tempo caminharia numa
determinada direção. Seria possível captar o seu movimento unívoco e
unidirecional. Como faz o quadro evolutivo de Morgan, no qual as fases de cada
momento de maturação encontram-se bem delineadas: estado selvagem, barbárie,
civilização. Cada uma dessas etapas, com exceção da última, se subdividia em
três períodos: baixo, médio, alto. A epopéia humana podia ser então narrada
através de uma seqüência de acontecimentos: a infância da raça humana, o
aprendizado da pesca e o uso do fogo, a invenção do arco e da flecha, o advento
da cerâmica, a domesticação dos animais, o cultivo do milho, a idade do ferro, a
descoberta do alfabeto fonético. A proposta culturalista toma o rumo oposto.
Nega-se a temporalidade unilinear da história, o que significa a impossibilidade
de apreendê-la a partir de um ponto zero, marco inaugural de todo um processo.
Isso fica claro na reflexão de Boas, Sapir e Whorf sobre os idiomas. A hipótese
de uma língua-mãe, da qual eles teriam se originado, não passaria de uma
especulação sem fundamento objetivo. Contrariamente à tradição européia (o
correto seria dizer, uma certa tradição européia), estudiosa do ramo
indo-europeu, eles se voltam para a fala dos povos indígenas nos Estados Unidos,
e têm pouco apreço pela busca da língua universal e "perfeita" (diria, Umberto
Eco). Se alguns autores postulavam a existência de um único, ou de poucos
idiomas no início da história dos homens, eles sublinham a sua variedade (Boas
pensa que o número de línguas, independentes entre si, era muito maior no
passado). Como observa Whorf, demarcando-se de seus opositores: "Felizmente para
a biologia, havia uma taxonomia sistemática que possibilitou a existência de um
fundamento para as perspectivas históricas e evolucionistas. Na Lingüística,
assim como nos outros estudos culturais, temos, infelizmente, a situação
contrária. O conceito evolucionista a respeito da linguagem e do pensamento foi
imposto ao homem moderno a partir do conhecimento de apenas alguns poucos tipos
estudados, de um total de centenas de diversos tipos lingüísticos; isso
encorajou um conjunto de preconceitos lingüísticos e alimentou uma grandiosidade
insípida na qual apenas algumas línguas européias, nas quais o pensamento se
baseia, representariam o ápice e o florescimento da evolução da linguagem"(6).
Neste sentido, eles afastam-se das virtudes do mito adâmico, no qual Deus teria
conferido uma língua comum à todos os homens. Suas simpatias estavam mais
próximas de Babel, da confusão das falas. De maneira um tanto lapidar, um dos
textos que compõem o livro
Anthropology Today, cujo objetivo era
inventariar o conhecimento antropológico da época, resume a posição de toda uma
escola de pensamento: "As pesquisas realizadas o século XX acumularam uma massa
de provas que demonstram, de maneira inequívoca, que as culturas particulares
divergem significativamente uma das outras e não passam por fases de evolução
unilinear"(7). Por isso os culturalistas privilegiam a idéia de difusionismo, a
existência de núcleos de irradiação dos traços culturais(8). Eles derivariam de
uma multiplicidade de pontos de partida, sendo em seguida, distribuídos no
espaço. Este é um tema que irá repercutir, entre outros, nas análises de um
autor como Herskovits, que se dedicou ao contato entre as civilizações, no qual
podiam ser constatados os fenômenos de aculturação.
A critica ao
evolucionismo continha também uma dimensão metodológica: a desconfiança em
relação ao comparativismo. Esta é uma divergência explícita em relação à
corrente britânica. O recurso comparativo é um dos traços característicos dos
trabalhos produzidos na Inglaterra, ele figura, inclusive, na definição do que
seria a Antropologia Social: "uma investigação da natureza da sociedade humana
através da comparação sistemática dos diversos tipos de sociedades"(9). O
adjetivo utilizado é sintomático, trata-se de uma disciplina que se percebe como
"social", não como "cultural", cujo diálogo é permanente com a Sociologia
(Malinowsky dizia ser ela uma "sociologia das tribos primitivas"). Seu objetivo
era compreender as condições de existência dos diversos sistemas sociais, o que
somente poderia ser atingido através do uso sistemático do método comparativo.
Na verdade, esta era uma tradição enraizada nos precursores do pensamento
antropológico, pois a comparação estava presente nos escritos de Frazer
(
Golden Bough) e Tylor (
Primitive Mind). Ferramenta analítica
crucial para um autor que tanto influenciou Engels na elaboração de sua "teoria"
sobre o Estado, a família e a propriedade privada (Morgan). Este era, no
entanto, o problema. A identidade da Antropologia norte-americana construía-se
em contraposição a este passado incômodo e o alter ego britânico. Boas
acreditava que tal metodologia estava inteiramente comprometida com premissas
inadequadas e discriminatórias. Ela se encontraria intimamente vinculada à uma
visão distorcida da história. O método vinha, a tal ponto impregnado de falsas
concepções, que seria conveniente abandoná-lo, na melhor das hipóteses,
utilizá-lo com reticência. Retomo um exemplo seu. Os antropólogos constatam a
existência de vários desenhos geométricos, cujas formas se generalizam nas
sociedades primitivas*. Questão: teriam elas uma origem comum ou obedeceriam
algum tipo de "lei" universal? Sua resposta é clara: pelo contrário, apesar do
resultado ser idêntico, elas podem provir de linhas de desenvolvimento distintas
e de infinitos pontes de origem. A comparação, neste caso, seria equívoca, pois
reforçaria uma evidência que restaria a comprovar: a origem comum. Diante do
impasse, ele sugere uma outra estratégia, melhor e mais segura: "O estudo
detalhado dos costumes praticados por uma tribo e sua relação com a cultural
total"(10). Para se afastar das generalizações indevidas, recomenda-se a solidez
do terreno etnológico. As vantagens da interpretação relativista sobre as outras
residiria neste aspecto, evitar a arbitrariedade "universalista" cultivando o
entendimento de cada cultura na sua particularidade, sua estrutura
idiossincrática.
A controvérsia pode ser lida sob vários ângulos (por
exemplo, a disputa entre Antropologia norte-americana e britânica), no entanto,
o embate principal gira em torno da idéia de "generalização". Lida na ótica
culturalista, o termo encerra indubitavelmente uma acepção negativa. Ela se
funda, porém, numa compreensão bastante parcial das coisas, pois não existe uma
vinculo necessário entre a utilização do método e a busca das origens humanas. O
mesmo artifício é utilizado em diferentes disciplinas, Lingüística, Sociologia,
História, e por distintas correntes teóricas, como os estudos de Dumézil sobre
os indo-europeus ou o de Weber sobre a burocracia chinesa e moderna. Durkheim
costumava dizer que o método comparativo era a essência da Sociologia, a única
maneira de se escapar à mera descrição dos fatos. Levando-se o raciocínio às
últimas conseqüências, pode-se dizer que sua interdição nos conduziria a um
impasse: a incapacidade das Ciências Sociais em fazer qualquer tipo de
generalização(11). Não é minha intenção entrar no debate metodológico, outros já
o fizeram antes, quero sublinhar a dificuldade que possui toda uma tradição
intelectual em tratar de questões "gerais", "comuns", "abrangentes",
"universais". Esses termos são utilizados de maneira bastante vaga nos textos
dos autores, mesmo quando se trata de assunto tão díspares como método, objetos
ou valores. Níveis diferenciados, muitas vezes incompatíveis entre si, são assim
reduzidos à um mesmo denominador; "generalizar" e "universalizar" funcionariam
quase como sinônimos, embora encerrem significados consideravelmente diferentes.
Ao privilegiar o singular, o risco é encerrá-lo em fronteiras tão seguras que o
alicerce da disciplina que busca compreendê-lo encontra-se ameaçado. Os
culturalistas ressentem as criticas que lhes são endereçadas, eles sabem que o
conhecimento científico não pode se contentar apenas com o particular. Para
resolver esta contradição eles avançam um argumento. "A cultura é universal na
experiência humana, mas sua manifestação local ou regional é única (Herkovits);
As culturas constituem diferentes respostas à essencialmente as mesmas perguntas
colocadas pela biologia humana e pela generalidade da situação humana (Kroeber,
Kluckhon)"(12). Mas em que constituiria este universalismo? Os autores enumeram
uma lista quase infindável de suas qualidades: linguagem, artefatos materiais,
família, práticas religiosas, proibição do incesto, satisfação de necessidades
vitais (alimentação e sexo), cuidado com as crianças, etc. Todos os agrupamentos
humanos utilizam procedimentos técnicos para assegurar sua subsistência,
distribuem seus produtos através de um sistema econômico, estabelecem algum tipo
de controle político, possuem mitos, ritos, artes gráficas. Ou seja, o universal
é a vida em sociedade. Mas, como se trata de explicá-la, e ela somente se
manifesta na sua diversidade, sua universalidade é meramente abstrata. As
pesquisas empíricas nada acrescentariam ao seu conhecimento, o particular já é a
prova de sua existência.
Por fim, o etnocentrismo. Os pensadores
evolucionistas, sem sombra de dúvida, abusaram dos qualificativos "bárbaros",
"selvagens", "incultos", para caracterizarem os povos primitivos. Os adjetivos
infantis, imaturos, irresponsáveis, inconscientes, fazem parte do léxico que
apreende a passagem da barbárie à civilização. Para resgatar o pensamento
antropológico desta visão discriminatória, na qual existiam "superiores" e
"inferiores", os ocidentais e os outros, era necessário uma re-significação dos
conceitos. Uma verdadeira operação semântica deveria ser desenvolvida. A crítica
ao etnocentrismo possui um aspecto metodológico. Como dizia Herskovits, "o
etnocentrismo é o ponto de vista no qual o próprio modo de vida é preferido em
relação a todos os outros"(13). Um exemplo: a definição de normal e anormal.
Este é o caso dos fenômenos de possessão na África e vários lugares da América
Latina. Para o acólito, o estado de possessão é a expressão suprema da
experiência religiosa, quando os deuses "descem" do universo sagrado e se
apossam da cabeça de seus filhos-de-santo. Para os psiquiatras e psicólogos, no
entanto, este tipo de manifestação seria patológica, o transe revelaria um
estado de histeria e loucura. Lowie, na sua critica ao biologismo e ao
evolucionismo, dirá: "O procedimento científico moderno requer a contenção de
qualquer implicação subjetiva; reconhecer que embora alguns objetos materiais ou
esquemas racionais possam ser considerados "altos" ou "baixos" - melhore ou
piores para certos propósitos - isso não se aplica à arte, à religião e à moral,
para os quais não existe um padrão universal de reconhecimento Como indivíduo, o
antropólogo reage às manifestações que lhes são estranhas de acordo com suas
normas nacionais e individuais; como cientista, porém, ele meramente registra o
canibalismo ou o infanticismo, compreende, e se possível explica tais
costumes"(14). O etnólogo, ao se aproximar do outro, precisa despir-se de seus
próprios valores. Ele descreve objetivamente os fatos e os comportamentos
observados, evitando de compará-los à seu lugar de origem (o que, evidentemente,
não é nunca problematizado). A rigor, esta é uma preocupação comum à qualquer
tradição antropológica, seja ela britânica ou francesa. Como seu objeto é
entender a alteridade, a diferença, tudo se resume a como traduzi-la. A escola
norte-americana irá, entretanto, estabelecer uma amálgama, indevida, entre o
relativismo cultural e a rejeição ao etnocentrismo. Ele funcionaria como uma
espécie de abrigo aos preconceitos teóricos. Retomo uma citação de Herskovits:
"O princípio do relativismo cultural decorre de um vasto conjunto de fatos,
obtidos ao se aplicar nos estudos etnológicos as técnicas que nos permitiram
penetrar no sistema de valores subjazcentes às diferentes sociedades. Este
princípio se resume no seguinte: os julgamento têm por base a experiência, e
cada indivíduo interpreta a experiência nos limites de sua própria
enculturação"(15). A afirmação tem implicações mais amplas (retomarei este ponto
adiante), mas num primeiro momento ela visa o etnocentrismo. A avaliação do
Outro seria um obstáculo ao conhecimento, deveríamos nos abster de julgá-lo. O
relativismo cultural se apresentaria, assim, como a postura ideal para se
escapar à tentação etnocêntrica.
A atração da escola culturalista pela
diversidade permeia os escritos de inúmeros de seus membros e os mais diferentes
domínios, da socialização dos adolescentes em Samoa aos estudos lingüísticos.
Por exemplo, Edward Sapir considera a língua não apenas como um instrumento de
comunicação, nela estariam indexados os padrões culturais de cada sociedade. Ele
diz: "O mundo nos quais vivem as sociedades são mundos distintos, não são apenas
mundos com rótulos diferentes"(16). Ao nomear as coisas de determinada maneira,
e não de outra, os idiomas configuram realidades distintas. A diversidade
cultural se reforçaria, assim, no plano da linguagem. Benjamin Lee Whorf
radicaliza sua perspectiva ao fundar o "relativismo lingüístico". Para ele, toda
língua seria uma sistema-padrão, cada um diferente dos outros, nos quais as
categorias do pensamento estariam ordenadas culturalmente. Quando falo em grego,
penso em grego. Neste sentido, à variedade de culturas e de línguas,
corresponderia uma variedade de modos de pensar. A tese do relativismo
lingüístico é interessante mas, certamente, controversa, sua debilidade
principal reside no fato de estabelecer um vínculo de necessidade entre língua e
pensamento. Dito de outra maneira, as categorias do pensamento seriam
determinadas pelo idioma. Surge, então, um paradoxo. Se cada universo
lingüístico é uma monada, como é possível passar de uma língua para outra? Ou
explicar o fenômeno da tradução, no qual se supõe a idéia de equivalência dos
termos, negada pelo relativismo? Simplesmente aponto para esses impasses, e
recordo ao leitor, tomei o exemplo da língua com o intuito de realçar a
sensibilidade pelo diverso. Ela pode ser ainda ilustrada pela metáfora de Ruth
Benededict do "arco das possibilidades culturais"(17). O número de sons que
podem ser produzidos pelas cordas vocais e a cavidade nasal é grande (ela diz,
ilimitado). No entanto, cada idioma deve selecionar apenas alguns deles. A
dificuldade que temos em compreender as línguas que não nos são familiares
deriva muitas vezes do fato de estarmos presos a determinada forma de seleção.
Por exemplo, em inglês existe apenas um k, mas para vários povos existem cinco
tipos de k, em diferentes posições da garganta ou da boca, implicando em
distinções no vocabulário e na sintaxe. O mesmo ocorreria com a cultura. Ela
pode ser pensada como um grande "arco de possibilidades" na qual os diferentes
povos selecionariam algumas delas. Cada universo cultural seria um "ponto de
vista".
Mas como esta diversidade é pensada? Há primeiro um pressuposto,
a existência de uma unidade específica: "a" cultura. São inúmeros os exemplos
sobre os costumes, as crenças, os mitos, os rituais mágicos, apresentados como
evidências de sua materialidade. Herskovits em seu livro
Man and His
Works, inicia sua argumentação com um titulo sugestivo, "a realidade da
cultura". Sua intenção é convencer o leitor, e novamente os exemplos cumprem
esta função, de que não poderíamos escapar desta força que nos transcende, ela é
concreta, real. Também em Kroeber, particularmente na sua definição do
"super-orgânico", ela é apresentada como uma "coisa", algo objetivamente dado
("a substância da sociedade, a coisa que denominamos civilização, transcende os
indivíduos e seu Ser se enraíza na vida"). Por isso, ela poderia ser apreendida
pelo observador (afastadas as pré-noções). Uma vez aceito o postulado, dele
deriva o corolário: a Teoria da Cultura (ilusão recuperada atualmente, por
alguns autores dos Estudos Culturais). Se a cultura é uma realidade
sui-generis, a ela corresponderia uma ciência capaz de compreendê-la, a
Antropologia Cultural. Esta é a ambição nunca alcançada. A tradição britânica,
neste aspecto, é bastante crítica em relação à escola norte-americana. Não
apenas por que o conceito de cultura seja elíptico, difícil de ser definido. O
texto clássico de Kroeber e Kuckhon faz uma revisão detalhada de sua utilização
(eles encontram 164 definições diferentes), mas não deixa, no final, de formular
uma concepção de razoável consenso entre os antropólogos(18). A questão é de
outra natureza. Ao se atribuir à cultura uma dimensão globalizadora e única, ela
é retirada da sociedade, passando ao largo das relações econômicas, técnicas e
sociais. Por isso, Radcliffe-Brown afirma: "Não é possível existir uma ciência
da cultura. É possível estudar a cultura apenas como uma característica de um
sistema social"(19) . A reificação do domínio cultural termina por isolá-lo do
processo histórico do qual ele se nutre.
A idéia da cultura como entidade
singular, na sua forma "universal" presente em todas as sociedades humanas, se
reproduz ao se considerar a pluralidade de sua manifestação. A ênfase também
recai sobre a inteireza de cada unidade. O livro de Ruth Benedict
Patterns of
Culture é exemplar. Sua idéia é que a cultura constituiria um conjunto de
padrões cuja realidade objetiva é interiorizada pelos indivíduos através da
socialização. Cultura e personalidade seriam parte da mesma totalidade. Caberia
ao antropólogo descrever as instituições, as técnicas, os rituais mágicos e
religiosos, enfim, os costumes, articulando-os ao comportamento das pessoas. A
análise repousa em dois níveis, objetivo e subjetivo. Por exemplo, o leitor
conhece os Zuñi (uma etnia dos Pueblos no Novo México) através de um conjunto de
informações etnográficas: são agricultores, possuem um "clero" que se ocupa das
preces e dos cerimoniais religiosos, a caça e a guerra estão associadas às
técnicas medicinais, a sociedade é matrilinear. No entanto, para captar sua
diferencialidade, a autora acrescenta um elemento: os Zuñi são "apolíneos",
cultivam a restrição do temperamento. Eles contrastam com os indígenas Dakota,
de inclinação "dionísica". Entre os Dakota a relação do indivíduo com o
sobrenatural passa pela busca pessoal das visões, algo que o martiriza e o
transborda. Tudo é excessivo, os sonhos, as drogas ingeridas, as práticas de
auto-mutilação, os jejuns para suscitar o estado de transe. O tipo de
personalidade apolínea é calma, requer um comportamento vigilante em relação às
emoções. Os Zuñi desconhecem as atitudes desregradas, a procura de experiências
religiosas individuais é um tabu, pois os rituais encontram-se nas mãos de um
clero especializado. Apesar de serem originários de uma região onde cresce uma
planta alucinógena, o peyote, eles têm uma certa repugnância em utilizá-lo.
Comportamento ascético que se estende ao consumo das bebidas alcoólicas. Da
mesma maneira é possível contrapor os Dobu (ilhas da Melanésia) aos Kwakiutl
(ilhas de Vancouver), os primeiros seriam "paranóicos", os outros,
"megalomaníacos". Um Dobu, para ser um membro influente na sua sociedade, deve
necessariamente possuir um temperamento desconfiado, alguém que suspeite dos
outros. Aquele cujo impulso seria a confiança ou a amizade, estaria socialmente
em desvantagem. A principal instituição entre os Kwakiutl é a rivalidade, em
torno dela se constroem as relações sociais. Não se trata de uma disputa por
objetos, acumulá-los como sinal de riqueza, o objetivo é simplesmente derrotar o
rival, tudo perde o sentido diante da vitória. Ruth Benedict conclue: "[Essas
culturas] não são meramente uma coleção heterogênea de atos e crenças. Cada uma
delas possui determinados objetivos em relação aos quais são orientados os
comportamentos e as instituições. Elas se diferenciam uma das outras, não apenas
por que certos traços estão presentes aqui e não ali, ou por que outros traços
são encontrados em outras regiões, e sob diferentes formas. Elas diferem,
sobretudo, por que constituem um todo orientado em relação à diferentes
direções"(20).
Alguns comentários são necessários. Primeiro, em relação à
idéia de comparação: dionísico
versus apolíneo, paranóico
versus
megalomaníaco (não entrarei no mérito dessas classificações, elas são abusivas
para se compreender as relações sociais). Eu havia sublinhado anteriormente a
desconfiança em relação ao recurso comparativo. Como entender essas
contraposições? Para se apreender a especificidade de uma entidade é necessário
contrastá-la à outras, não existe identidade sem alteridade. A rigor, nenhuma
análise de um ponto discreto dispensaria um certo olhar comparativo. Entretanto,
seu intuito não é a "generalização", captar o que haveria de comum entre eles;
interessa sublinhar as especificidades. O "dionísico" possui uma qualidade
própria irredutível ao tipo "apolíneo", e vice-versa. O contraste é a forma de
se iluminar as diferenças. Outro aspecto refere-se à relação entre cultura e
personalidade. Esta é uma característica da Antropologia norte-americana, que a
partir dos anos 30 aproxima-se da Psicologia e da Psicanálise. Esta incursão no
terreno da subjetividade é rica e promissora, estabelecendo uma ponte entre
disciplinas estanques. Ela inaugura um diálogo profícuo com Freud e integra
temas pouco usuais à reflexão antropológica, como os sentimentos de culpa e de
vergonha. A escola norte-americana irá inspirar um conjunto de trabalhos
criativos sobre a relação da vida mental e a esfera cultural, estimulando novas
áreas de pesquisa, como a etno-psiquiatria. Não obstante, minha leitura
interessada conduz a outra dimensão. A interpretação proposta contém uma
psicologização do social (por isso, foi bastante criticada) que lhe permite
diagnosticar as sociedades em termos de "caráter". A metáfora, cuja origem é
claramente psicológica, retém o traço idiossincrático da personalidade. O
caráter, algo essencialmente pessoal, desloca-se para qualificar o plano do
coletivo. Cada indivíduo age de acordo com os padrões de sua cultura, e
inversamente, cada cultura revela uma identidade "pessoal". Individualidade e
singularidade cultural se complementam, elas partilham as mesmas virtudes, são
unas e indivisíveis.
Essa conclusão não se restringe, porém, ao
entendimento das sociedades primitivas, ela engloba as sociedades complexas.
Isso se faz num contexto bastante controverso. Durante a Segunda Guerra Mundial
o
Office of War Information e o
Office of Strategic Services
(precursor da CIA), recruta diversos antropólogos (Mead, Bateson, Gorer,
Kluckhon, Benedic) para elaborarem diagnósticos da mentalidade dos inimigos:
japoneses e alemães. Não se trata de uma atividade meramente "imperialista"
(muitos críticos, a vêem assim), é preciso contextualizar as coisas, os tempos
são de guerra e muitos deles possuem um engajamento anti-fascista. Mas não se
pode eludir o fato de que os trabalhos produzidos vem marcados pelo signo da
política, o reverso dos ideais, até então, preconizados. Surgem, assim, os
estudos do "caráter nacional" nos quais a ideologia liberal norte-americana é
uma marca indelével. No pós-guerra, eles se desdobram, contemplam outros paises
(os russos, os novos inimigos, assim como os romenos e franceses) e ganham
inclusive um rótulo acadêmico: Antropologia à distância. Ironicamente, a
tentação etnocêntrica, que tinha sido, em parte, evitada no passado, ressurge,
alimentada e mesclada às disputas ideológicas.
The Crysanthemun and the
Sword, na sua versão original um panfleto para ser distribuído entre os
soldados americanos, é inteiramente construído a partir da dicotomia
americano/japonês. Ela nada tem de neutra, nos lembra as categorias de
classificação estudadas por Durkheim e Mauss, nas quais um dos pólos é virtuoso
e justo, o outro a sua imagem invertida. Assim, nos trabalhos de Geoffrey Gorer,
os japoneses são descritos como "infantis", "complexados", "agressivos". Desde a
infância eles seriam submetidos a uma educação dualista, ser subserviente ao
patriarca da família e aos irmãos mais velhos, mas agressivos com a mãe e as
irmãs. O universo masculino exigia obediência e passividade, em contrapartida, o
feminino era o espaço das gratificações (comida, bebida, carinho, sexo), ele
podia ser submetido ao controle e agressão para se obter tais premiações(21).
Qualidades estranhas ao "caráter nacional" norte americano, no qual se valoriza
a "igualdade", a "máquina", o "sucesso financeiro". Esses escritos, como os que
os antecederam, os pensadores europeus do século XIX, tem muito de senso comum.
Eles contrapõem as "essências" nacionais reforçando os estereótipos que se tem
dos outros. Um exemplo banal: "os americanos adaptam sua maneira de viver aos
desafios lançados permanentemente pelo mundo; os japoneses se reconfortam num
modo de vida planificado e codificado" (Ruth Benedecit). Os estudos sobre o
Japão são eivado de observações deste tipo, e fundamentam-se numa visão da
história inteiramente equívoca. O "caráter japonês" (submissão à autoridade
familiar, culto ao imperador, sentimento de vergonha) seria, antes de mais nada,
a-temporal, atravessaria incólume o caminhar do tempo. Ele resistiria,
inclusive, às grandes mudanças, como a revolução Meiji e o processo de
modernização. (a autora insiste, Meiji é uma restauração, não uma revolução). Um
dos aspectos contemplados pela sua análise é o vínculo entre o imperador e a
nação ("um Japão sem o imperador não seria o Japão"). Esta lealdade do povo a
seu suserano tem um interesse antropológico, seria mítica e imemorial, e
político, pois nas propostas apresentadas ao governo americano, no intuito de
vencer a guerra, recomenda-se cautela no tratamento do imperador(22).
Entretanto, essas observações "à distância" nada têm de originais, elas
simplesmente reproduzem a ideologia nativista (
kokugaku). Cunhada por um
grupo de intelectuais da Escola do Aprendizado Nacional no final do século XVII,
nada tem de milenar, ela se impõe ao longo do XIX com as disputas sobre os
"tratados desiguais" (exigências do colonialismo inglês e da expansão americana
no Pacífico). Durante o período Tokugawa (1600-1868), a noção de povo inexiste
(o Japão era uma sociedade de castas) e o imperador é uma figura política
secundária (o país é governado por uma junta de senhores de guerra, o
bakufu). Com a revolução Meiji, a transformação do xintoísmo em religião
oficial (face à predominância anterior do budismo e do confucionismo), o fim do
regime de castas, os imperativos da modernização, consagra-se o mito do
imperador como essência da unidade nacional. Meiji "inventa" uma tradição, na
qual o passado é convenientemente interpretado à luz das contradições do
presente(23).
Deixo de lado esses aspectos para retomar o fio de minha
argumentação. A análise das sociedades complexas requer um ajuste dos métodos de
pesquisa empregados anteriormente. Como observa Margaret Mead: "Considerando
nossa experiência em extrair informações de nossos informantes, e nossa
habilidade em compreender a inter-relação entre todos os aspectos do
comportamento cultural, começamos a explorar os aspectos do comportamento
nacional que poderíamos considerar como relevantes, pois eles estavam
relacionados às instituições nacionais...Nossa pesquisa envolvia entrevistas com
os membros da cultura em que estávamos interessados, entrevistas com pessoas de
outras culturas, e que tinham vividos anos no país em estudo, um exame intensivo
da cultura material, particularmente filmes, romances, autobiografias, diários,
que em princípio poderiam substituir o tipo de observação da vida com que
estávamos acostumados. Utilizamos, assim, nosso treinamento no trabalho de
campo, para nos ajudar a identificar os comportamentos que eram característico
de toda uma nação"(24). Não haveria, pois, nenhuma incompatibilidade em se
transpor determinadas técnicas e concepções para um terreno inteiramente diverso
(o que é, em parte, verdadeiro). Sublinho um aspecto da citação: a inter-relação
de todos os aspectos da cultura. O antropólogo, tendo antes testado seus
conhecimentos em outras áreas, seria capaz de interpretar uma série de
informações díspares, mas sistemáticas, dentro de um mesmo quadro holístico.
Isso por que o comportamento das pessoas traduziria a realidade das instituições
que as transcendem. "Todos os cidadãos do moderno Estado-nação estão expostos
aos padrões institucionais cuja regularidade engloba a comunidade nacional como
um todo"(25). Caberia compreender esses padrões. Postula-se, portanto, uma
homologia entre a totalidade das sociedades primitivas e a totalidade das
sociedades complexas. Geoffrey Gorer abre seu livro
The American People
com uma frase sugestiva: "Tento aplicar neste livro, à uma grande comunidade
moderna, alguns métodos e conhecimentos da antropologia cultural"(26). Para um
sociólogo como Tönnies a afirmação é, no mínimo, surpreendente, o que ele
denomina de "sociedade" é pensado enquanto "comunidade". Esta é, no entanto, a
dimensão a ser valorizada. Margaret Mead acredita que nos Estados Unidos, os
estudos de comunidade, empreendidos pela escola de Chicago, seriam os
antecessores legítimos das pesquisas sobre o caráter nacional. A nação seria uma
espécie de comunidade ampliada. Mead, desta forma, pode estudar o caráter
francês através de uma análise da família francesa (pouco importa se a sua
amostragem se concentre nos setores burgueses). Tudo se passa como se as
relações familiares fossem imunes ao meio no qual elas se situam,
independentemente das classes sociais, da oposição entre a cidade e o campo, dos
processos migratórios. Do ponto de vista analítico, as fraturas existentes nas
sociedades industriais seriam irrelevantes diante da integração cultural. O
caráter, unidade psicológica e social, desvendaria o que há de "íntimo" a todos.
Estaríamos, assim, diante de uma miríade de características únicas, o mundo
sendo composto por nações com personalidades distintas.
O relativismo
cultural considera a cultura na sua própria estrutura, sua metodologia é
idiográfica, privilegia os fatos individuais, e não monotética, a busca de
generalizações (evito a palavra universal). Tal concepção teórica projeta-se num
outro domínio, o dos valores(27). É difícil encontrar uma definição satisfatória
do que eles seriam, uma polissemia de sentidos envolve suas múltiplas
expressões: obrigação moral, sentido de uma ação, sentimentos, concepções de
mundo, ethos, motivação, fins. Em todas essas acepções pressupõem-se a
existência de certas preferências, uma gradação hierárquica de coisas e ações,
algumas seriam mais apropriadas ou desejáveis do que outras. Os valores encerram
uma dimensão cognitiva e emocional, ou como diz Kluckhon, são "idéias formulando
prescrições para a ação"(28). De alguma maneira eles falam do comportamento das
pessoas, e como o antropólogo observa as práticas sociais, é preciso
compreendê-los. Seja no seu significado ou na forma como são socializados, pois
para existirem, se inscreverem na conduta pessoal, eles devem ser interiorizados
durante a infância, transformando-se numa organização sistemática da
experiência. Os valores encontram-se, assim, enraizados nas sociedades que os
produzem, eles são "fatos sociais". No entanto, como havia observado Herskovits,
"os julgamentos de valor fundamentam-se nas experiências dos indivíduos", e
sabemos, cada um deles retrata sua própria sociedade. Por exemplo, o sentimento
de ultraje que um Kwakiutl ressente diante da morte de alguém de seu grupo, ele
é único e intransferível. Isso significa que cada cultura, na sua unicidade,
contém valores inteiramente distintos. Ou seja, formas de apreciação (de
avaliar) dos objetos, do mundo, das pessoas e seus atos. Tal constatação
implica, num primeiro momento, uma critica ao etnocentrismo (como vimos, antes),
mas em seguida, ela se reveste de um significado mais abrangente. Se os valores
são também idiossincráticos não é possível "pesá-los" segundo uma escala
comparativa. Eles nada teriam de comum. É preciso evitar alguns mal entendidos.
O relativismo moral não significa que os indivíduos possam "fazer o que
quiserem" à revelia de qualquer tipo de norma social (Um dos personagens de
Os Irmãos Karamazov dizia, "se Deus não existe tudo é permitido"). David
Bidney nos lembra que "todo indivíduo deve se conformar às regras de sua
sociedade". Afinal, sua personalidade funda-se nas relações sociais que o
transcendem. O problema se coloca quando sociedades distintas entram em contato.
E o autor acrescenta: "cada sociedade necessita tolerar os códigos das outras
sociedades no interesse de uma mútua sobrevivência. A obediência e a
conformidade são imperativos culturais desde que o código de comportamento seja
socialmente aceito"(29). A passagem introduz um deslocamento sutil do argumento.
Um elemento estranho nela se insinua: a tolerância. Seria ela um valor
universal? Contradizendo as teses relativistas. Ou um deslize do pensamento
liberal norte-americano? Projetanto os seus ideais no universo dos outros. O
mesmo entendimento encontramos em Herskovits, quando ele caracteriza o
relativismo cultural como "uma filosofia que, reconhecendo os valores erigidos
por cada sociedade para guiar a sua própria vida, enfatiza a dignidade inerente
de todo corpo de costume, e a necessidade de existir uma tolerância das
convenções, embora elas possam diferir uma das outras"(31). Estamos distantes
dos princípios metodológicos da observação participante. Os culturalistas tinham
como ponto de partida o estudo das sociedades primitivas, mas sub-repticiamente
somos induzidos à questões de outra natureza. A idéia de tolerância, de respeito
mútuo (em si, um julgamento de valor), apaga as contradições inerentes à própria
lógica que se quer confirmar (o respeito mútuo dificilmente explicaria a
história das guerras, invasões, conflitos, escravidão, segregação social, regime
de castas, imperialismo, etc). Mas a argumentação possui um objetivo implícito,
não confessado, harmonizar a realidade empírica das culturas diversas e uma
postura dita "filosófica". A Antropologia ensinaria a seus praticantes uma
tolerância maior, por acaso, os mesmos ideais preconizados pela sociedade
norte-americana.
Independentemente dessas contradições, importa sublinhar
algumas conseqüências práticas deste tipo de perspectiva. Em 1947, um grupo de
antropólogos, liderados por Herskovits, é convidado pela ONU para escrever o
relatório preparatório à carta dos Direitos Humanos. O resultado é um
anti-clímax. Seus autores se debatem entre a afirmação dos direitos universais e
o horizonte relativista dos valores. O documento que eles redigem é curto,
contém uma parte interpretativa e um conjunto de recomendações(31):
- "O indivíduo realiza sua personalidade através de sua cultura, portanto, o
respeito pelas diferenças individuais implica o respeito pelas diferenças
culturais".
- "O respeito pelas diferenças culturais encontra-se cientificamente validado
pelo fato de não ter sido descoberta nenhuma técnica de avaliação qualitativa
das culturas".
- "Os padrões e os valores são relativos às culturas dos quais eles derivam,
assim, qualquer tentativa de se formular qualquer tipo de postulado que decorra
de um código moral e de crenças de uma única cultura, deveria ser excluída da
aplicabilidade de qualquer Declaração dos Direitos Humanos dirigida à humanidade
como um todo"
O texto criou uma série de constrangimentos, pois
tinha sido elaborado pela comissão executiva da Anthropological Association.
Várias foram as críticas(32). Uma parte delas focalizava suas contradições
internas. Por exemplo, dizer que "o respeito pelas diferenças individuais
implica o respeito pelas diferenças culturais", é uma afirmação genérica, sem
nenhum fundamento. O contrário seria provavelmente mais plausível. Por outro
lado, considerar a ausência de uma técnica de avaliação das culturas como prova
do respeito às diferenças culturais, é associar dois tipos de julgamentos sem
nenhuma relação de necessidade entre eles. Restam, ainda, algumas observações de
caráter mais substantivo. Primeiro, a ilusão que um grupo de profissionais nutre
ao arbitrar temas que fugiam à sua "jurisdição". A autoridade científica
dificilmente seria legítima no campo dos valores (Durkheim dizia, "a ciência é
uma moral sem ética"). Segundo, qual o grau tolerável das diferenças. Seria
justo aplicá-la ao nazismo? Como justificar o engajamento de vários antropólogos
durante a Segunda Guerra, diante dos princípios recomendados. O relatório
continha, ainda, na sua parte argumentativa, algumas passagens controversas: "o
homem é livre somente numa sociedade na qual existe uma definição da liberdade".
O que fazer diante das condições nas quais o conceito de liberdade inexiste?
Muitas dessas questões serão retomadas posteriormente na discussão sobre os
direitos humanos(33). Mas gostaria de sublinhar uma aspecto deste incidente: a
coerência do texto apresentado. Ele leva às últimas conseqüências a lógica
prescrita por um determinado tipo de pensamento. Neste sentido, ele é
previsível, nada possui de surpreendente. Suspender o julgamento, seria a
maneira ideal de fugir à uma visão desfigurada dos outros.
* * * * *
*
O relativismo cultural possui um mérito, ele inocula no pensamento
uma sensibilidade pelo diverso. Isso não é pouco. A tradição das Ciências
Sociais é fruto do Iluminismo e do industrialismo da modernidade. Seu
universalismo é sempre interessado. Convenientemente, não se objetiva nunca o
lugar a partir do qual o discurso se enuncia. Esta omissão intencional atribui
ao Outro o pecado do provincianismo. Encerrado nas suas fronteiras ele seria
incapaz de transcender os seus próprios limites. Sei que a Antropologia anterior
à década de 50, quando o processo de descolonização da África e parte da Ásia
não tinha ainda se completado, encerrava uma boa dose de etnocentrismo. O Outro
era silencioso, somente podia se exprimir através da fala de alguém que lhe era
estranho. O antropólogo possuía o monopólio da interpretação das sociedades
ágrafas. Mesmo assim, os textos da escola culturalista contém um esforço notável
de descentramento. É como se eles nos dissessem, há muitas coisas para se
compreender no mundo e a curiosidade intelectual não deve se conformar ao espaço
de uma única província (Europa ou Estados Unidos). Neste sentido, os
antropólogos têm algo de distinto em relação a seus antecessores. Pode-se ler
Montaigne, e sua crítica ao canibalismo, como uma metáfora ao barbarismo da
civilização dita ocidental; ou Montesquieu, em suas
Cartas Persas, como
um olhar distante e irônico em relação aos europeus. Também os românticos
"falavam" do outro, embora no fundo estivessem interessados em si mesmos. Ao
tomar o "primitivo" (agora, utilizo propositalmente as aspas) como objeto de
estudo, a Antropologia nomeia um campo específico, com uma identidade própria.
Em tese, importa captar a especificidade dessas sociedades (e não do mundo
europeu) apartadas da modernidade. A sensibilidade pelo diverso funciona, assim,
como um mecanismo intelectual poderoso.
Contudo, a perspectiva
relativista tem muito de ilusão de ótica. Os objetos que ela enxerga são
verdadeiros mas suas configurações, espelhadas na retina, estão distorcidas. Na
verdade, ao se pensar a diversidade cultural na sua unicidade, termina-se por
apreendê-la como uma essência dotada de uma materialidade insuspeita. Por isso a
metáfora do caráter torna-se plausível. Haveria uma correspondência, nunca
comprovada, entre a identidade pessoal e a personalidade de uma cultura. A
ilusão está em se pensar cada entidade como um mundo em miniatura,
idiossincrasia inteiramente independente do contexto no qual ela se enraiza. As
sociedades não existem apenas em si, mas sempre em situação. Ainda nos anos 50,
Georges Balandier chamava a atenção para este aspecto(34). Por exemplo, o
culturalismo norte-americano definia a aculturação como uma mudança decorrente
do contacto de "dois ou mais sistemas culturais autônomos"(35). O raciocínio
pressupunha a independência das entidades culturais, cada uma delas sendo
inteiramente diversa e separada da outra. Bastaria analisar sua interação para
entender o resultado dos fenômenos nascidos de sua aproximação. Balandier, ao
estudar o messianismo na África, ponderava que o contacto entre as civilizações
dificilmente seria inteligível sem situá-las no contexto colonial. De nada
adiantaria contrapor traços das religiões tradicionais ao catolicismo ou ao
protestantismo, sem levar em consideração as relações sociais reordenadas pela
colonização. A rigor, a autonomia postulada é enganosa.
O livro de Franz
Boas,
The Mind of Primitive Man, abria com uma imagem cartográfica do
globo terrestre: uma diversidade de povos, culturas, idiomas e costumes
distintos. Ao lado dos europeus e de seus descendentes, contrastam os chineses,
os nativos da Nova Zelândia, os negros africanos, os indígenas americanos, cada
lugar com o seu modo de vida peculiar. A paisagem é a fotografia de uma época, o
planeta seria um conjunto de nódulos distintos, países, civilizações, grupos
diversos. O "nós" europeu ocuparia apenas uma faixa de sua extensão, restariam
muitas outras, afastadas de sua maneira de ser. A imagem proposta descreve o
planeta como um emaranhado de pontos discretos, cada um deles constituiria uma
identidade específica. A câmera antropológica captava a territorialidade desses
espaços descontínuos. Muitas vezes esta perspectiva (no sentido arquitetônico do
termo) se projeta sobre o mundo atual. Novamente, ela prescinde da idéia de
situação, cada cultura desfrutaria de uma inteireza absoluta. Basta, porém,
imergi-la nas contradições reais da história para percebermos que o particular é
sempre tensionado pelo contexto no qual se insere. A situação de globalização
redefine as partes, desde as mais "tribais" às nações mais industrializadas.
Neste sentido, não há como escapar à sua dimensão comum. E não se trata de uma
escolha ou de uma visão etnocêntrica do mundo, o processo é mundial, penetra e
atravessa as diferenças sociais e culturais à despeito de suas especificidades.
As questões "comuns", "gerais", não decorrem necessariamente de uma filosofia
universalista, elas existem por que as diferentes sociedades estão situadas numa
teia de relação de forças (são subalternas ou dominantes) que as transcendem e
as determinam (os direitos humanos não são universais, mas pertencem ao destino
comum no âmbito da modernidade-mundo).
Retiro um exemplo da própria
literatura antropológica: os Baruya, estudados por Maurice Godelier(36). Este
grupo de nativos da Nova Guiné, em parte controlada pela Austrália, no passado
também pela Holanda, hoje pela Indonésia, foram "descobertos" por um jovem
oficial australiano em 1951. Em 1960, uma segunda expedição militar retornou,
estabelecendo um posto oficial para a "pacificação" da população. O primeiro
antropólogo (Godelier) desembarca na região em 1967, momento em que chegam os
funcionários do estado colonial e os missionários. Em 1975, à sua revelia e sem
saber muito bem porque, seus habitantes foram integrados à um novo estado
independente, Papua-Nova-Guiné, que se transformou num membro das Nações Unidas.
A história dos Baruya é recente, não data dos tempos imemoriais, inicia-se em
meados do século XVIII. Eles são descendentes da tribo Yoyué que vivia a poucos
dias de marcha do lugar que ocupam atualmente nas montanhas. Conta-se que um dia
os homens e as mulheres de uma aldeia partiram para a floresta numa grande
expedição de caça, os inimigos dos Yoyué invadiram suas casas, saquearam tudo e
massacraram os seus habitantes. Os poucos que escaparam, homens e mulheres,
penetraram na floresta e buscaram refúgio nas altas montanhas, onde vivia uma
outra tribo, os Andjé. Aí, um dos clãs locais, os Ndélié, lhes ofereceram suas
terras, casaram-se entre si, e após duas ou três gerações, juntos, mataram uma
parte dos Andjé, os outros fugiram para o outro lado da montanha. A partir de
então formou-se um novo grupo social, com um território, ritos e uma história
mítica particular. Pergunta: seria possível descrever o "caráter" cultural dos
Baruya sem situá-los nesta história de disputas, exílios, e
refundações?
As sociedades são relacionais, nunca relativas. Seus
territórios são invadidos pelos grupos inimigos e as trocas de mercadorias,
objetos e mulheres, são constantes. Elas possuem, inevitavelmente, uma concepção
do Outro. Não basta definir-se a si próprio, na verdade, isso se faz em
contraposição aos que se encontram fora de um determinado círculo simbólico.
Sabemos que o termo "bárbaro" provém da Grécia antiga, ele servia para
distinguir entre um "nós" grego e "os outros", os estrangeiros. Ao reconhecer o
pertencimento à um determinado grupo, o idioma era uma fronteira decisiva, os
"bárbaros" eram aqueles que não o entendiam. Na Europa ocidental a representação
do Outro passava pelo contraste com a idéia "civilização", civilidade dos modos,
e com a revolução industrial, as conquistas técnicas. Cabia aos não europeus o
fardo da selvageria ou a incompletude das culturas orientais (o capitalismo não
podia nascer no Oriente, dizia Weber). Porém, este não é um traço específico de
uma única sociedade (muitos diriam, da dominação ocidental). Os velhos mapas
chineses do século XVII dividiam o mundo em círculos concêntricos. No centro
encontrava-se o império celestial, na sua vizinhança, as zonas sob sua
influência, Japão, Coréia, Vietnã, distante, viviam os estrangeiros, os
ocidentais. Os asiáticos eram limpos (tomavam banho regularmente) e comiam com
pauzinhos, os outros eram sujos e comiam com as mãos. No final do século XVIII
os ingleses enviam uma embaixada à China para "abrir os portos" ao "livre
comércio". Após a Revolução Industrial muitos fabricantes queriam impor a
comercialização de seus produtos em escala internacional. Porém, a China
imperial era um mundo a parte, no qual o tempo celestial regia a vida dos homens
e do imperador. Pequim era o centro de um universo quadrado, cujos cantos,
habitados pelos estrangeiros, não eram cobertos pelo céu. Os presentes trazidos
pelos ingleses, uma forma de seduzir o poder local, não surtiram o efeito
desejado, abrir as negociações, eles foram percebidos como uma oferenda ao
imperador, sendo interpretados pelo código vigente, a vassalagem. Os exemplos
podem ser multiplicados. Os lugbara na África possuem um complexo sistema de
classificação do mundo. A aldeia, a família, o masculino, pertencem ao pólo da
ordem, o feminino caracteriza os elementos da desordem. O espaço da floresta,
por que foge ao controle dos homens, é exterior à aldeia, é considerado
feminino; nele habitam os animais selvagens, os imprevistos, os perigos, e
claro, os forasteiros. A representação nativa ordena os indivíduos e as coisas,
e assimila o desconhecido à uma ameaça potencial.
A rigor, não faz
sentido dizer que os membros de uma determinada sociedade possam suspender o
julgamento sobre os outros. Caso isso ocorresse eles não poderiam pensá-los
enquanto distintos de seu grupo de origem. Como dizia Sapir, a cultura
encontra-se indexada na língua, para existir, o estrangeiro, vizinho ou inimigo,
deve ser nomeado. O ato de enunciação lhe dá sustentação material e simbólica. O
que significa, então, o debate em torno dos julgamentos morais? Quando se lê os
textos de Antropologia Cultural, tem-se a impressão que eles projetam uma sombra
na compreensão do Outro. Mas não é difícil perceber que existe uma distorção
ótica dos parâmetros da discussão. Confunde-se os olhares (no plural) que os
distintos grupos sociais têm uns dos outros, com o olhar (no singular) do
antropólogo que os analisa. Tomo um exemplo, deliberadamente, controverso: a
excisão e a infibulação. Como compreender essas práticas de mutilação corporal?
Do ponto de vista da disciplina Antropologia faria pouco sentido pensá-las como
um ato de barbárie ou o resquício de crenças "cruéis" e "incivilizadas". A
circuncisão, masculina ou feminina, é comum a diversas sociedades (os judeus,
por exemplo) e certamente possui um sentido social e simbólico em cada uma
delas. Ela é vista como um embelezamento do corpo, associa-se às crenças e
tradições religiosas, sendo considerada uma honra nos rituais de iniciação. O
etnocentrismo, neste caso, atuaria como uma barreira epstemológica. Superá-lo é
uma maneira (sempre incompleta) de avançar o conhecimento antropológico. No
entanto, seria ilusório imaginar que o saber acadêmico pudesse fundar um
discurso moral sobre a condenação ou valorização dessas práticas. Pelo simples
fato do antropólogo não possuir o monopólio da interpretação do social. A
controvérsia sobre a excisão e a infibulação envolve grupos e indivíduos
marcados pelos mais diversos interesses: a mulher sudanesa que professa os
costumes de sua sociedade; a jovem somaliana que gostaria de não de ser
submetida aos rituais de seus pais; a repulsa das mulheres dos países vizinhos,
nos quais inexistem tais práticas de mutilação; a sedução de outras mulheres
africanas, que passam a adotá-las, considerando-as prestigiosas (algumas tribos,
que tradicionalmente não as conheciam, passam a integrá-las aos seus costumes);
as feministas "ocidentais" que fundaram um movimento contra a mutilação genital
feminina (FGM:
female genital mutilation); as africanas que vivem em
cidades e as vêem como resquício do passado não moderno; as mulheres da África
negra, atuantes nos organismos internacionais, que as consideram uma violação
dos direitos humanos; os homens de paises africanos, que desejam a modernização
da sociedade e as melhoras tecnológicas, mas não aceitam abrir mão do lugar que
ocupam na cultura tradicional; a imigrante africana nos paises europeus que
insiste em educar suas filhas nos padrões tradicionais, apesar da excisão ser
considerada um crime no lugar onde habitam; a imigrante que decide não seguir
mais suas tradições, poupando suas filhas do sofrimento que conheceu antes; a
jovem filha de imigrante que tem relações sexuais antes do casamento e dirige-se
a um médico para a reconstrução da vagina; o médico europeu que por razões
éticas recusa-se a atendê-la; o outro médico que aceita fazer a reconstrução,
pois sabe que ela será punida fisicamente pela família; a intelectual somaliana
que denuncia as práticas que conheceu quando jovem, associando-as,
equivocadamente, ao fundamentalismo islâmico; a acadêmica que retorna dos
Estados Unidos à sua terra natal, e na busca de suas raízes, conhece tardiamente
os rituais de iniciação; as mães imigrantes que hesitam entre praticar ou não
tais atos, pois, sem a excisão, suas filhas poderiam ser segregadas quando
retornassem ao lugares de origem, com a excisão, seriam discriminadas nos países
europeus. A lista poderia ser prolongada, mas ela sugere uma conclusão clara: a
polêmica envolve os mais diferentes atores, vivendo nos mais diversos contextos.
O antropólogo, na melhor das hipóteses, tomará partido contra ou a favor, mas
sua voz é uma entre tantas, e nada tem de mais autorizada do que as outras. A
controvérsia independe dos princípios da observação etnológica, ela é inerente à
situação no interior do qual essas práticas se exercem.
O relativismo
cultural repousa num pressuposto, a inteireza absoluta da cultura. Não se trata
tanto em postular o seu isolamento, afinal, por mais sólidas que sejam as
fronteiras os grupos sociais interagem entre si. A rigor, a temática do contato
é uma dimensão importante dos estudos culturalistas (difusionismo, sincretismo,
aculturação). O problemático é a noção de inteireza, que permite associar a
cultura às metáforas do caráter e da identidade. Neste sentido, ela seria um Ser
que se conjuga no singular. O "pluralismo" da visão relativista é, na verdade,
uma justaposição de singularidades. É também esta inteireza que nos ilude ao se
considerar a cultura, não como uma dimensão da vida social, mas como a vida
social na sua totalidade. Os antropólogos norte-americanos possuem uma
perspectiva holística. Qualquer costume ou prática social somente se tornaria
inteligível quando analisada dentro de um todo. Como este processo de
constituição da humanidade (ou seja, do homem vivendo em sociedade) é, em grande
medida, inconsciente, cultura e indivíduo formariam uma unidade indivisível.
Nada existe fora da (singular) cultura. Mas como dizia a tradição antropológica
inglesa, existiria tal entidade? Seria correto subsumir os diversos níveis
sociais num mesmo denominador? Consideremos as frases: "toda cultura encerra uma
identidade" e "toda sociedade encerra uma identidade". Ao substituirmos
"cultura" por "sociedade" a argumentação se debilita. Dificilmente
conseguiríamos associar, de maneira inequívoca e convincente, as relações
sociais à um único tipo de identidade. Seria mais plausível dizer: "a sociedade
encerra diversos tipos de identidades". Ao considerarmos a esfera cultural, o
plural é mais adequado do que o singular (por isso, na situação de globalização,
não existe uma cultura global ou uma identidade global). Cultura de massa,
cultura popular, cultura de elite, cultura negra, cultura nacional, são
qualificativos (corretos ou controversos) que, certamente, não esgotam a
amplitude das relações existentes no âmbito das sociedades. Eles apenas nomeiam
uma esfera distinta de outras, sejam elas econômicas, sociais, políticas, ou até
mesmo, culturais. Por outro lado, a correspondência postulada entre a totalidade
cultural e a identidade (ou caráter) é equívoca. Esquece-se que toda identidade
é uma construção simbólica, neste sentido, ela não "é" um Ser, mas se "constrói
como"; processo no qual estão envolvidos agentes em conflito e práticas sociais
diversificadas. Ela é uma referência coletiva, mas também, algo em disputa,
sobretudo no caso das identidades nacionais e étnicas. No fundo, o debate sobre
o relativismo tem tendência a reificar as representações simbólicas (que são
reais) enquanto uma entidade singular: "a" cultura. Ao retirá-la do processo
histórico, torna-se possível contrastá-la ao universal ou a qualquer tipo de
generalização, vista como indevida. Afinal, se a vida social se concentra no
"íntimo" da identidade, o que lhe é externo torna-se algo episódico e
inautêntico.
1 Remeto o leitor à um texto meu "Anotações
sobre o universal e a diversidade", Revista Brasileira de Educação, vol.12, nº
34, 2007.
2 Ver Regna Darnell, And Along Came Boas: continuity and revolution
in Americanist Anthropology, Amsterdam, John Benjamins Publishing Co, 1998; da
mesma autora, Invisible Genealogies: a history of Americanist Anthropology,
Lincoln, The University of Nebraska Press, 2001; Thomas C. Patterson, A Social
History of Anthropology in the United States, Oxford, Berg, 2001.
3 Franz
Boas. The Mind of Primitive Man (1911), New York, Free Press, 1939.
4 Boas,
citações respectivamente p.13 e p.250, "Race and Progress" (1931) e "The Aims of
Anthropology Research"(1932) in Race, Language and Culture, New York, The Free
Press, 1940.
5 Kroeber, "The superorganic" (1917) in The Nature of Culture,
Chicago, The University of Chicago Press, 1952, p.23.
6 Benjamin Lee Whorf,
"Thinking in primitive communities" in Language, Thought and Reality, New York,
John Wiley & Sons Inc., 1956, p.84. Consultar também a introdução de Boas in
Handbook of American Indian Languages (1911), Oosterhout (The Netherlands),
1969.
7 Julian H. Steward, "Evolution and Progress" in A.L.Kroeber (ed.)
Anthropology Today: an encyclopedic inventory, Chicago, The University of
Chicago Press, 1953, p.324.
8 Boas, "Evolution or diffusion?" (1924) in Race,
Language and Culture, op.cit.
9 A.R.Radcliffe-Brown, Method in Social
Anthropology, Chicago, The University of Chicago Press, 1958, p.133.
* Uma
ambigüidade latente rondava o vocabulário antropológico, principalmente em torno
do termo "primitivo". Todos os autores eram reticentes quanto ao seu uso, porém,
o empregavam correntemente até os anos 50. Como minha argumentação, nesta
primeira parte do texto, encontra-se colada aos escritos da época, utilizarei o
termo sem aspas.
10 F.Boas, "The limitations of the comparative method of
Anthropology", (1896) in Race, Language and Culture op.cit., p. 274.
11
Passeron tem um belo texto no qual mostra que a Sociologia, contrariamente ao
pensamento popperiano, não elabora explicações "universais"; no entanto, é
fundamental que ela, através do recurso comparativo, consiga estabelecer uma
série de "generalizações". Ver O Raciocínio Sociológico, Petrópolis, Vozes,
1995.
12 Herkovits, Melville. Man and His Works, New York, Alfred and Knopf,
1948, p.?; Kroeber, A.L.; Kluckhon, C. Culture: a critical review of concepts
and definitions, Cambridge, The Museum, 1952, p.176.
13 Melville Herskovits,
Man and His Works, op.cit. p.68.
14 Rober Lowie, The History of Ethnological
Theory, New York, Holt, Rinehart and Winston, 1937, p.25
15 Herskovits, Man
and His Works, op.cit., p.
16 E. Sapir "The status of linguistic as a
science" in Culture Language and Personality, Berkeley, University of Califórnia
Press, 1949, p.69.
17 Ruth Benedict, "The diversity of cultures" (cap. II) in
Patterns of Culture (1934), Boston, Houghton Mifflin Co., 1963.
18 Kroeber e
Kluckhon, Culture: a critical review of concepts and definitions, op.cit.
19
A.R.Radcliffe-Brown, A Natural Science of Society (1948), Chicago, The Free
Press of Glencoe, 1964, p.106.
21 Geoffrey Gorer, "Japanese character:
structure and propaganda" in The Study of Culture at a Distance, Chicago, The
University of Chicago Press, 1949.
22 Gorer propõe às autoridades
norte-americanas: "o Micado e o Trono não deveriam ser nunca atacados; na
verdade, eles deveriam ser sempre mencionados de maneira respeitosa. Atacar o
Micado, seria como atacar o Papa para os católicos medievais". Idem p.402.
23
Ver R.J.Smith, "The creation of tradition" in Tradition, Self and Social Order,
Cambridge, Cambridge University Press, 1986.
24 Margaret Mead, "The
importance of national cultures" in Arthur S.Joffman International Communication
and the New Diplomacy, Bloomington, Indiana University Press, 1953, p.93
25
Margaret Mead, "National Character" in Anthropology Today, op.cit. p.648.
26
Geoffrey Gorer, The American People, New York, W.W.Norton & Co, 1948,
p.9.
27 Consultar Kroeber, "Values as subject of natural science inquiry" in
The Nature of Culture, op.cit.
28 Clyde Kluchon, "Values and
value-orientation in the theory of action: an exploration in definition and
classification" in T. Parsons e E.Shills (ed.) Towards a General Theory of
Action, Cambridge, Harvard University Press, 1951, p.396.
29 David Bidney,
"Cultural Relativism" in International Encyclopaedia of the Social Sciences,
vol.3, London, Macmillan Co, 1968, p.545. Do mesmo autor, "The concept of value
in modern Anthropology" in Anthropology Today, op.cit.
30 M. Herskovits, Man
and His Works, op.cit., p.76.
31 Melville Herskovits, "Statement on Human
Rights", American Anthropologist, vol.49, nº 4, 1947.
32 Ver Julian H.
Stewart, "Comments on the statement of Human Rights" e H.G.Barnett, "On science
and Human Rights" in American Anthropologist, vol.50, nº 2, 1948.
33
Consultar E. Downing; G. Kushner. Human Rights and Anthropology, Cambridge,
Cultural Survival Inc., 1988.
34 Georges Balandier, Sociologie Actuelle de
l'Afrique Noire, Paris, PUF; 1971.
35 Siegel, Vogt, Broom, Watson,
"Acculturation: an exploratory formulation", American Anthropologist, vol.56, nº
6, 1954.
36 Maurice Godelier, Au Fondement des Sociétés Humaines, Paris,
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Renato Ortiz se graduó en sociología en la Universidade
de Paris VIII y se doctoró en sociología y antropología en la École des Hautes
Études. Fue investigador del Latin American Institute de Columbia University y
del Kellog Institute de Notre Dame. Actualmente, es Profesor titular del
Departamento de Sociología de Unicamp. Ha publicado, entre otros, A
conciencia fragmentada, Pierre Bourdieu, Cultura brasileira e
identidade nacional, A moderna tradição brasileira. En español:
Otro territorio; Mundialización y cultura; Los artífices de una
cultura mundializada; Modernidad y espacio. Benjamin en París.
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